- Josefa, peça para o Jordão preparar o carro que terei que sair, só preciso dar um telefonema, antes. – Fala Samir para a copeira que está parada ao lado da mesa onde Samir acabara de tomar seu café da manhã.
- O senhor quer que traga o telefone para o senhor aqui?
- Não precisa. Eu vou ao escritório para falar de lá mesmo. Mas não devo demorar muito.
- Eu vou avisar ao seu Jordão para deixar o carro pronto lhe aguardando.
- Obrigado.
Samir pega o guardanapo de algodão branco com pequenas rendas bordadas nas laterais que estava em seu colo, limpa delicadamente a boca e o coloca ao lado do jogo de louça inglês ainda com um resto de café com leite que havia tomado há pouco. Ele se levanta da mesa e caminha pela casa, agora vazia, onde por anos morou com a esposa, Laura.
Seu casamento, ocorrido em 1954, foi um dos grandes acontecimentos sociais daquele ano. Filho único de um industrial da época áurea da borracha na região amazônica, Samir era um dos solteiros mais disputados pelas moças da sociedade. Havia estudado na França, onde teve os primeiros contatos com o trabalho de Allan Kardec e leu O Livro dos Espíritos. Ao retornar ao Brasil, trouxe consigo uma boa carga de conhecimento do Espiritismo e a vontade de fazer com que o estudo espírita fosse realizado por aqueles que sofriam sem saber exatamente o que lhes acometia.
Laura, sua esposa, era uma moça moderna. À frente de seu tempo, como se dizia na época. Havia estudado na Faculdade de Medicina da Bahia, sendo uma das únicas mulheres da turma. Ao retornar ao Pará, começou a atender doentes no Hospital Juliano Moreira, o primeiro hospital psiquiátrico do estado, e foi então que começou a perceber que alguns dos pacientes, que eram levados por seus parentes, acreditando que os mesmos sofriam de problemas psiquiátricos, se comportavam como as pessoas descritas nos estudos do médico francês que seu então namorado, Samir, lhe mostrara.
A partir de suas observações, montou juntamente com Samir e alguns amigos, um pequeno grupo de estudos espíritas chamado Caminheiros da Luz, onde buscavam, seguindo os ensinamentos de Kardec, ajudar as pessoas que sofriam pelo desconhecimento da força das influências espirituais que sofriam e, principalmente, pela mediunidade ostensiva que haviam trazido quando reencarnaram.
Sobre a mesa de mogno do escritório alguns documentos meticulosamente arrumados, uma pequena bola de cristal branco que Samir havia ganho de Laura quando ambos fizeram sua última viagem juntos para a Espanha, uma luminária com a cúpula em metal dourado e o pé em mármore preto, um jogo de escritório de couro preto com detalhes em metal dourado, com um porta-canetas, uma capa de bloco de notas, um porta-envelopes e um risque-e-rabisque impecavelmente limpo, o telefone preto da década de 30 que havia pertencido ao escritório do pai de Samir, além do porta-retratos de prata com adornos florais onde estava a foto do casamento de Samir e Laura e ao lado, em outro porta-retratos de aço-inox, uma foto do casal com os dois filhos e os três netos sentados em um dos bancos do jardim da casa de Samir, tirada na última festa em que Laura esteve junto da família, antes da internação para o tratamento do câncer de pâncreas que nunca mais permitiria que ela retornasse para sua casa.
Samir pega o telefone celular no bolso de sua calça de linho e senta-se na cadeira estofada com veludo vermelho.
- Luís? Como vai meu amigo? É Samir quem fala. Estou bem, graças a Deus. Meu irmão, você sabe que tenho pouco tempo neste plano. Eu sei, amigo. Também sentirei tua falta, mas é chegada a hora de encontrar com minha Laura. Mas estou lhe telefonando, amigo, para lhe falar mais uma vez sobre aquele rapaz que conversamos na semana passada. Sei que não tive como lhe apresentar pessoalmente, mas sei que não faltará oportunidade para que você o encontre e o ajude a evoluir e seguir com o caminho que lhe foi destinado. Sei disso, meu irmão. Você também. Fique em paz!
Samir desliga o telefone e o coloca sobre a mesa. Leva a mão ao peito, fazendo uma leve expressão de dor. Respira fundo, levanta o rosto e pega o porta-retratos com a foto da família e os olha com carinho, passando os dedos envelhecidos pela idade com carinho especial sobre os rostos do filho e da filha. Abre a gaveta da mesa. Ainda com a respiração levemente ofegante, pega dois envelopes com documentos dentro, os lacra com a cola em bastão que estava também na gaveta e os coloca sobre a mesa. No porta-caneta, pega a caneta dourada e no primeiro escreve "Para meu querido filho, Omar" e, no segundo, "Para minha amada filha, Dalila". Coloca os dois envelopes a mesa, fecha a caneta e a coloca sobre os envelopes. Olha para a foto dele e de Laura no dia do casamento, toca com as pontas dos dedos a imagem da esposa vestida de noiva e fala:
- Também te amo, querida.
Na cozinha, Josefa, a copeira estava terminando de checar com a cozinheira o cardápio do almoço daquela quinta-feira quando Jordão, o motorista entra pela porta de serviço.
- Dona Josefa. Já está tudo pronto. Vou aguardar o seu Samir ao lado do carro.
- Obrigado, Jordão. Vou avisar a ele que você já está pronto. – Responde Josefa ao motorista e depois se vira para a cozinheira e conclui. – Se faltar algum ingrediente para preparar o almoço me avise que mandarei providenciar imediatamente.
- Sim senhora. – Responde a cozinheira.
Josefa caminha pela cozinha em direção à porta, atravessa o corredor de tábua corrida da antiga residência dos Salmen e segue em direção ao escritório passando pela sala de estar mobiliada com o antigo jogo de sofás de couro escolhido por Laura em uma de suas viagens para participar de palestras de renomados psiquiatras no sul do país. Josefa chega à porta do escritório e, antes de entrar, arruma o vestido preto que usa.
- Sr. Samir. O carro está pronto e o Jordão está à sua espera.
Ela fica parada na porta do escritório aguardando uma resposta que não vem e decide entrar. Depois de alguns passos, Josefa para, ao olhar para Samir que está sentado na cadeira de veludo. Em umas das mãos, ainda apoiada sobre a mesa, o porta-retratos com a foto de seu casamento. A outra mão está pendente ao lado da cadeira, já completamente imóvel. Josefa, se benze e fecha os olhos sem conseguir dar um passo sequer.
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Médiuns (Completo)
Romance🥇1º Lugar na Categoria ESPÍRITA nos meses de novembro e dezembro de 2023 e janeiro de 2024. 🙏🏻 🥈TOP 3 nas Categorias ESPIRITISMO, MEDIUNIDADE e PARANORMALIDADE, em Janeiro de 2024. 🙏🏻 Como você se sentiria entrando em um mundo que nunca acredi...