O açougueiro afiava o seu facão na pedra vítrea para mais um dia intenso de trabalho. Um enorme porco, onde moscas mutantes se assentavam para por os seus ovos, iria ser esquartejado.
Olhando para o interior do açougue, vislumbrei diversos animais pendurados; capivara, coelho, tatu e uma banda de boi. A carne escura, exposta naquela temperatura quente, escaldante, onde larvas incrustadas se remexiam no seu interior, talvez fossem aqueles metazoários que exalavam aquele odor insuportável, ou talvez não; talvez fosse aquele lugar sujo onde o chão era grudento, onde o sangue dos animais matizavam o ambiente repugnante.
Enxerguei olhos circunspectos de ratos que vinham das covas deterioradas das paredes recheadas de ervas daninhas e de farelos de madeiras, provavelmente causado por cupins que assim como os ratos, moscas e mosquitos, eram residentes por ali. Os ratos ficavam atentos a cada fragmento que espatifava ao chão. Contive sagradamente o vômito que me vinha, tentando expelir o meu café da manhã com ovos mexidos, leite e uma fatia de pão.
Aproximando-me das carnes putrificadas, pus o meu nariz mais próximo e por pouco não fui intoxicado por aquele odor. Senti uma tontura e cambaleei por alguns segundos. Se não fosse aquele piso pegajoso, provavelmente eu teria caído e me lambuzado sobre ele.
– Sente-se bem? – perguntou-me o açougueiro percebendo que eu perdera um pouco a minha firmeza no piso.
— Sim. Estou. – disse me afastando um pouco.
— Vai querer o quê? — perguntou o velho chicoteando as carnes expostas em seu balcão com um galho de uma planta para espantar as moscas mutantes que insistiam posar-se sobre ela.
— Ainda estou pensando.
— Tudo bem. — disse o velho com o seu profundo bigode chinês.
Naquele momento, uma mulher obesa puxando um fio com um cachorrinho franzino da raça pinscher, entrava no estabelecimento do açougueiro.
O açougueiro mudou subitamente o seu semblante ao ver aquela mulher.
— Bom dia! Que carne o senhor tem aí?
— Apenas vísceras. — disse o açougueiro em um tom ranzinza.
— E estas outras carnes? – questionou a mulher.
— Estão vendidas.
A mulher fez menção de ir embora, porém deu meia volta e disse:
— Meu marido lhe deve alguma coisa?
— Seu marido me deve a vida.
Aquela frase do açougueiro fez a mulher estremecer. Notei em seus olhos a expressão de ser humilhada. Antes de eu lhe fornecer uma quantia, sem saber se aquilo lhe humilharia ainda mais, o açougueiro levantou uma espécie de portinhola e chamou a mulher para que entrasse naquele espaço de trabalho dele. O cachorrinho ia lambendo o chão molhado de sangue, e a mulher lhe puxava, assim como uma criança puxa um carrinho com uma corda.
– Se quiser a víscera, pegue aí e se sirva. – disse abrindo um recipiente onde continha uma carnificina de animais.
A mulher, então, meteu a mão naquele sangue pastoso e nauseabundo. Mexia como uma bruxa mexe um caldeirão. As moscas rodeavam o recipiente. Os ratos carnívoros rugiam de fome e saiam desesperados do claustro asqueroso que residiam. Cachorros vira latas surgiram, e uma vira lata escroteava com uns que cheiravam a sua vagina que exalava de longe. Um líquido amarelado, agudo, pingava pelo o asfalto e os cachorros disputavam em lambidas e vociferações. As tripas, que a mulher pegava sem nenhum asco, eram como sabonetes, escorregadias a mão desnuda. O seu cachorro era bem exigente, não gostava de qualquer víscera. Ele tinha preferência pelo o bobó, aquele pulmão com sabor diferente, com sabor de carne ensanguentada.
Quando a mulher enfim achou aquele pulmão, reconhecendo-o apenas apalpando-o, puxou tão ávida e cansada que o recipiente virou-se sobre ela, fazendo escorrer por todo o seu corpo gigante aquele líquido, aquelas tripas fedorentas, o coração do boi, que por um instante teve a impressão de ainda esta batendo, a cabeça de um porco, sua traseira, tudo lhe encobrindo.
— AJUDEM-ME! – Berrou endiabrada.
Os cachorros pularam então para cima dela, esquecendo a boceta molhada da cadela que também partiu para cima daquela sujidade espatifada sobre a mulher ensanguentada. Os ratos, percebendo aquele momento de euforia de todos, também se aventuraram pegando para eles uma víscera suculenta. As enormes moscas pairavam sobre a cabeça da mulher, zunindo sons perturbadores.
No meio daquele literal banho de sangue que a mulher sofreu, viu, pousado em sua enorme barriga, uma mão, precisamente uma mão esquerda, adornada de uma aliança, a mesma que pusera em um dia de complacência humana. Estremeceu ainda mais. Queria berrar, mas teve medo se se afogar no sangue que lhe escorria pelos lábios. Examinando melhor, viu uma perna, um pé, um quadril, um braço, dois braços, outra perna, outro pé, um pênis e, enfim, a cabeça do seu adorado marido, esparramado sobre ela, no meio daquela podridão toda.
O açougueiro sorriu, um sorriso de louco, de alívio, e disse:
— Seu marido pagou o fiado com a vida.
E então sorriu mais alto, mais forte ainda. E então fugi daquele lugar. Daquele açougue do diabo.
FIM
Autoria: Jim Patrik
(Conto extraído do romance O Doentio Caso dos Irmãos Disformes, postado aqui mesmo no meu perfil do wattpad. Deem uma passadinha lá 😊)
VOCÊ ESTÁ LENDO
ESPECTROFOBIA (Contos de Terror)
HorrorSe você gosta de explorar o desconhecido; fantasmas, demônios, lendas urbanas, vampiros, aqui é o lugar certo. Seja bem vindo às mais assustadoras histórias de horror. Atenção! Plágio é crime. Todos os contos estão autenticados.