Continuação (HARUM)

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Samuel M estava com uma cara horrível e atrasado quando atravessou a porta do trabalho. Os olhares investigativos do terceiro andar lhe percorreram, bem como Frédéric que lhe enxergava à distância.

— Você está horrível, amigo. — disse Frédéric.

— Eu passei da hora na cama. Acho que bebi demais ontem à noite. — Samuel M realmente fora o que mais bebeu dos três amigos. O próprio Frédéric era quem enchia o copo do pobre coitado quando este o virava, empolgado com o álcool. — Você teria por um acaso uma escova para ajeitar este cabelo?

— Não, não tenho.

— Ora essa, tô vendo aí o no seu bolso.

— Ah, perdão. Tome.

Samuel M correu ao banheiro e quando apreciou o seu estado frente ao espelho, viu de fato como estava horrível.

"Não posso cometer estes tipos de deslizes. Como pude ser tão infantil na noite passada e me exceder da forma como me excedi".

A dor de cabeça viera, latejante, como se alguém o desferisse golpes de marreta, e, no entanto, apesar da insuficiência de seu estado mental, não saía dos trilhos, mantendo a boa performance e o típico humor no trabalho.

Frédéric Carlton comentou que George não aparecera naquele dia no trabalho, o que deixou os dois bastante confusos. Será que George Alvim não conseguiu se restabelecer do pileque da noite passada?

— Eu definitivamente acho impossível. — comentou Frédéric. — George é familiarizado com as bebidas desde a sua puberdade. Se regenera fácil de uma noitada. Por isso descarto uma ressaca.

— Deve estar acamado. — disse Samuel M. — A noite passada estava instável, pode ter pego um resfriado ou algo parecido.

— Pode ter sido. — encerrou Frédéric. — Ah, você podia me fazer um pequeno favorzinho?

— Se me for possível, claro que sim.

— Preciso me ausentar por alguns minutos. Você podia reparar minha ausência brevemente?

— Tudo bem. Sem problemas.

— Obrigado.

E Frédéric Carlton se ausentou por longos minutos do seu trabalho, sobrecarregando Samuel M que tivera que se dobrar. Porém teve que abandonar o posto do trabalho quando um cliente exigiu certa roupa que não havia na exposição. Assim, Samuel M correu para o almoxarifado deixando vários clientes a espera para serem atendidos. O térreo, onde se localizava o depósito, parecia mais com um calabouço, um contraste grotesco comparado ao precípuo da loja. A passos largos, Samuel M alcançou o estoque e, remexendo caixas e móveis, presenciou uma cena nada sólita. Ali estava o casal Frédéric Carlton e a jovem Dulce, seminus, repousados sob as caixas. Frédéric Carlton, surpreso e envergonhado, pusera a se vestir enquanto a jovem Dulce continuava deitada saboreando seu cigarro.

— Eu realmente não esperava por isso, Frédéric! — disse Samuel M, estupefato.

— Peço perdão, Samuel. Já estou me dirigindo à minha área de serviço.

— Não se preocupe, Frédéric; o jovem não irá comentar com ninguém sobre isto, não é mesmo, senhor M?

— Como você tem absoluta certeza disto, senhorita?

— Apenas sei, senhor M.

— Achei o que eu queria. — disse Samuel M, encontrando a peça. — Queiram me dar licença.

Samuel M voltou então para o trabalho pensando na cena nada agradável que vira. Logo, Frédéric Carlton também chegara, encabulado, dirigindo olhares desconfiados para Samuel M. Alguns clientes reclamavam da demora no atendimento e os olhares especuladores mais uma vez vinham do terceiro andar.

Após o movimento dos clientes se amenizar na loja, Frédéric Carlton veio até Samuel M.

— Mais uma vez peço perdão pelo o ocorrido, Samuel. Eu realmente não devia ter feito aquilo no horário de meu expediente, mas a senhorita Dulce, ah que jovem, que jovem, você bem pôde ver, me seduzira, deixando-me excitado, oh, um adúltero infantil um...

— Não me interessa o que vocês fizeram, Frédéric! — exclamou Samuel M.

— Oh! Perdão, meu amigo. Eu bem que comentei com o ausente George que você nutria uma paixão platônica por Dulce. Estás com ciúmes!

— Ciúme? Paixão por Dulce? — arguiu Samuel M, a face escarlate. — Veja bem, Frédéric Carlton, eu sou um homem casado e, ao contrário de você, que também é casado, eu honro o meu compromisso.

— Samuel, não precisa gritar! Todo mundo está olhando para gente.

— Que se dane, Frédéric! Eu já me cansei da sua falsidade, dos seus falsos conselhos.

— Falsos conselhos? Eu sempre fui um cara honesto com você.

Os olhos de Samuel M se dirigiram ao terceiro andar e, com as órbitas esbugalhadas, avistou, por tudo que é mais sagrado na vida, o soberano senhor Harum, as mãos apoiadas na balaustrada, imponente, magnífico, tão vivaz como nunca. Tal era o olhar de satisfação de Emilio Harum a Samuel M. Encorajado, incitado por aquela força inumana, a mais idolatrada deidade, Samuel continuou, firme, duro.

— Eu sei que está tentando me prejudicar por aqui. — sussurrou no ouvido de Frédéric. — Mas isto não vai acontecer, Frédéric Carlton, pois você é uma carta fora do baralho.

— O que quer dizer com isso? — perguntou Carlton, sobressaltado.

— Por ora, não lhe cabe saber. Agora apenas se afaste de mim, seu ser cobiçoso.

E Frédéric Carlton se afastou, ludibriado, desconhecendo completamente Samuel M a quem desta vez mantivera distância, e que agora se sobressaía ainda mais no trabalho; falante, comunicativo, com o sorriso aprazível, tal qual o senhor Fin cobrara. Carlton se sentia para baixo, distante, dispersivo. Por vezes deixava o cliente falando sozinho e a outrora persuasão fora substituída por um desânimo.

"O que está acontecendo comigo" se perguntou Carlton.

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