Lembrei-me de certo dia quando o Jair tentou roubar um osso do Pintado apenas para provocá-lo. Pintado grunhiu mostrando suas presas como a de um vampiro. Jair desistiu com medo de que o cão voasse em cima dele. Eu estou dizendo isto, porque era desta forma que eu conseguia ver o Pintado; furioso, mal humorado com aquele homem lá fora. Porém o que mais temia-mos era o homem usar o seu terçado para trucidar nosso cãozinho que tanto amávamos.
E o Pintado parecia ter ido para cima do homem lá fora, ou o monstrengo estava apenas a provocá-lo, galhofando-o como um patife que era. Eu e os meus irmãos nos aproximamos da janela, e a abrimos o suficiente para ver o que estava acontecendo e fomos repelidos por algo assustador, repugnante. O homem lá fora pusera a cara na janela, e a fechamos, rápido. Pelas fendas, vimos aquela face maquiada de cicatrizes, o nariz como um outeiro devastado por lixos orgânicos, os lábios tortos, semiabertos, denotando a falta dos dentes. Tão feio! Tão horrendo, tao mau, meu Deus. Sorriu diabolicamente apontando para a porta para que nós a abrissemos. Balancei a cabeça verticalmente dizendo que não com os meus irmãozinhos prostrados atrás de mim com os olhos fechados fazendo uma oração. "Eu não vou abrir", sussurrei em transe como que soletrando. Ele leu os meus lábios e fez um gesto negativo com a boca me causando repulsa. Afastou-se caminhando na direção da porta, mais uma vez sumindo de nossas vistas, e começou a desferir golpes com o seu terçado na porta.
"Jeremias, ele vai entrar, ele vai entrar", berrava as crianças.
Eu me encontrava impotente naquele instante.
"Faça alguma coisa! Impeça-o de entrar".
Meus irmãozinhos! Tão miúdos e já exalavam o odor excruciante da morte. Não entrarei mais em detalhes sobre a feição dos coitados, dói-me a alma só de lembrar.
O homem lá fora continuava a desferir golpes na porta, até abrir uma pequena fresta onde pôs sua enorme língua asquerosa que respingava uma gosma viscosa, azeda.
"Eu vou pegar vocês", ele disse, num tom de voz afaimado, diabólico, e continuou a golpear a porta que estava para ceder.
Agora o nosso desespero era indizível. Armei-me com um cabo de enxada, afinal fora a única coisa que encontrei, pois meu pai havia levado sua carabina. Prudente, correto.
E mais uma vez me veio uma vaga lembrança de quando o papai guardava sua arma na parede, como um quadro qualquer, adornando o compartimento de casa. Eu, papai e a mamãe estávamos a colher milho em nosso milharal, com um sol escaldante, o suor salgado encharcava meus olhos ofuscando minha visão. Fora um dos dias mais quentes que eu vivi em toda minha vida, e, também, um dos mais tensos, marcantes, traumatizantes. Um aterrador estrépito viera de não muito longe, chamando-nos à atenção. A troada viera do sul, da direção de nossa casa, onde os pequenos estavam a dormir.
Jair estava com seus dois anos de idade, e o Joel ainda somava alguns meses, que eu bem me lembre.
Meus pais largaram tudo que tinham e correram para a direção da casa. Eu fiquei estático. Conhecia bem aquele estrondo, afinal por vezes corria atrás das suas vítimas, quando saía com o papai pelas matas adentro. Fiquei parado ali por alguns segundos, um filme passava na minha cabeça. Um filme sangrento, brutal.
Despertando-me de minha estaticidade, corri. Corri como um leopardo, trespassando toceiras e ultrapassando meus pais. Cheguei em casa com o coração saltitante e um tanto que aliviado. Vi Jair chorando ainda com a carabina nas mãos e o pequeno Joel a engatinhar, sorrindo, sem saber o que de fato estava acontecendo. Uma enorme brecha, mais parecida com um covil, no lado esquerdo do miúdo, mostrava o estrago que o tiro fizera. Meus pais entraram em seguida correndo na direção dos pequenos. De tão nervoso que eu estava, nem fui até o Jair para tirar de suas mãos a arma, meu pai que puxou-lhe abruptamente antes que mais um tiro viesse.
"Meus meninos", berrou minha mãe agarrando-os forte entre os seios.
Depois daquele episódio, nunca mais o papai deixou a arma sob o nosso alcance. Sempre levava consigo ou, quando não, guardava em esconderijos irremovíveis.
Comtinua...
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ESPECTROFOBIA (Contos de Terror)
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