A greve dos coletores de lixo já estava para fazer vinte dias e a cidade se inundava em um lamaçal de chorume insuportável. O odor da caiça penetrava nas vestes e nos móveis das residências, e, para piorar ainda mais a situação, em alguns bairros ocorrera a falta de água o que desesperou ainda mais as pessoas, bem como as torrenciais chuvas que transbordavam bueiros e casas trazendo o caos para a população mais carente.
E eu estava neste meio. Por sorte eu ainda tinha água, porém estava com problema sério. Os ratos. Aliás, não só eu, mas como o bairro inteiro também.
Em dias chuvosos, os ratos se sentem ameaçados pelos esgotos submersos, e caminham pelas ruas, convivendo conosco.
Eu morava num beco de rua íngreme e esburacada que quando chovia mal podíamos sair de casa. Porém, seu empregador não liga muito para o buraco que você mora, ele quer apenas que você não demore, e que, muito menos, falte ao trabalho. Então eu pulava pelas saliências da rua, ou subia em portões e calçadas altas para evitar o contato com a vala alta que batia quase no joelho.
Eu trabalhava como empacotador em uma pequena taberna a mais ou menos dois quilômetros de casa. Era perto de casa e o trabalho era algo leve, sem muitas cobranças e segredos. Eu era muito bem quisto pelos amigos do trabalho por ser um cara brincalhão e não se aborrecer pelos apelidos que me colocavam. Eu tinha a voz anasalada, ou, como dizem popularmente, a voz fanha, e quase nunca entendiam o que eu queria dizer. De fato era algo constrangedor, mas nada que me deixasse para baixo. As pessoas que me conheciam já entendiam a minha língua, vamos dizer assim.
O interior da minha casa tinha apenas um compartimento, ou seja, sem repartições. O quarto era a minha cozinha e o banheiro era apenas o penico. Apesar da limitação, eu tinha zelo pelas minhas coisas; como dizem, um pobre bem arrumadinho. Porém, as brechas pela casa que os cupins (que também pareciam se perpetuar) faziam, era outro problema.
Assim, com todas esses agravementos, a falta de coleta de lixo, os esgotos submersos e os buracos pela casa, aconteceu o previsto: a visita dos malditos roedores. E eles estavam se multiplicando cada vez mais pelos arredores. Eu sempre acordava na noite com o grunhido dessas praguinhas, as vezes por cima das louças roendo as sobras de comidas, e outra pelas minhas roupas sujas que eu amontoava em um canto especifico da casa para poder lavá-las no final de semana.
Eu estava ludibriado com esta situação, e a minha paciência se esgotou quando certa noite uma destas ratazanas mordeu um dos meus dedos do pé que estava de fora da cama. Eu dei um salto tão grande pensando que fosse um espectro que tivesse puxado a minha perna que consegui golpear o pequeno maquiavélico para longe acertando-o a parede. Vi a praguinha se debater no chão para depois voltar para o seu compendioso covil. "Merda", esbravejei. Com isso, não voltei mais a pegar no sono e fiquei ali ouvindo o grunhido das pragas que começavam a se aglomerar pelas cavidades lodosas que a casa podia ofertar.
"Eu preciso ter um gato", disse comigo.
Apesar de também odiar felinos, eu tinha que ter um para afugentar aqueles malditos invasores.
E, assim que eu voltava do trabalho, veja bem a sorte que eu tivera: encontrei um gatinho, esperto, já corpulento miando numa lata de lixo procurando por comida.
"Venha, gatinho. Vem", eu disse dando uma pipoquinha para ele. O felino veio todo tolinho para o meu lado e me apressei de pegá-lo e colocá-lo debaixo do braço. "Você vai ser muito útil pra mim, bichano. Vamos para a casa, te darei comida, mas tu me darás proteção".
Assim levei o felino para casa onde o coloquei em cima de um pano inutilizado e lhe dei água e mais um pouco de pipoca esfarelada. O bichano comeu toda a pipoquinha e se agasalhou no pano. Tadinho, devia estar cansado e com frio. "Pronto! Agora você tem uma casa para dormir e dela cuidar". Tomei meu banho rápido para economizar a água e quando voltei vi o gato com os pelos eriçados espreitando um dos umbrais que os ratos saíam.
"Muito bem, garoto".
Naquela noite dormi tão bem como há tempos não havia dormido. O bichano reparou a casa como um bom soldado e no dia seguinte até lhe trouxe uma boa conserva para que ele pudesse comer como um gato domesticado.
Porém, logo percebi que o felino também tinha os seus interesses, e sempre se resvalava em mim como que cobrando um agrado. Quando não, se jogava em cima de minha leitura para chamar minha atenção. Nos primeiros dias, confesso, evitei de afagá-lo. Não queria criar em casa um animal mimado e ocioso, por isso o evitava, empurrando-o com desinteresse. Mas, sem armazenar rancor, lá estava ele novamente me chamando atenção.
E assim, comecei a criar empatia por aquele bichano. Minha simpatia por ele só crescia, ele era meu único amigo e bom soldadinho da casa. Comecei a comprar a melhor ração do mercadinho de onde trabalhava, e logo o bichano ficou corpulento e bem felpudo, mas nem por isso se tornou um gato preguiçoso e mimado. Muito pelo contrário, agora se parecia mais com um general de grandes batalhas.
Mas a horda de ratos se acumulava pelas ruas, estava dando nos noticiários da rádio, e eu os via da janela, andando de bando como marginais a praticar arrastões. Os roedores estavam a ultrapassar o número da população, logo aqueles pequenos seres repugnantes dominariam a cidade trazendo pânico para todo mundo.
E pânico foi a palavra que me traduziu quando cheguei certa noite do trabalho e vi apenas a ossada do meu pobre general. Uma corja de mais de vinte ratazanas roíam meu pequeno amigo arrastando seus restos mortais para o nicho dos malfeitores.
Jazia ali o meu general e amiguinho.
Fim
Autoria: Jim Patrik
VOCÊ ESTÁ LENDO
ESPECTROFOBIA (Contos de Terror)
HororSe você gosta de explorar o desconhecido; fantasmas, demônios, lendas urbanas, vampiros, aqui é o lugar certo. Seja bem vindo às mais assustadoras histórias de horror. Atenção! Plágio é crime. Todos os contos estão autenticados.