Enquanto retornava para a sua própria casa e passava por ruas desertas, abarrotadas por casas fortemente iluminadas, Wen Ning foi surpreendido por um pequeno estabelecimento que ainda atrevia-se a manter suas portas abertas àquele horário.
O estabelecimento era uma casa de chá modesta em tamanho, porém suntuosa em beleza. Era um lugar aconchegante, com móveis notavelmente confortáveis, decoração sóbria e de muito bom gosto e ornamentada por vasos de plantas bonitas e bem cuidadas. No ar, pairava agradável aroma de ervas que tornava o ambiente bastante convidativo.
Assim que Wen Ning adentrou o local, os últimos clientes já haviam se levantado para ir embora. Indeciso sobre se deveria sentar-se em uma das mesas ou ir embora como os últimos clientes, o inseguro General permaneceu paralisado na porta. Percebendo a indecisão de seu novo cliente, a dona do estabelecimento, uma senhora baixinha, encurvada e um pouco acima do peso que aparentava estar acima dos 70 anos, aproximou-se com lucidez e simpatia segurando um bule de chá.
— Eu pretendia fechar após a saída daqueles últimos clientes, mas ainda resta água fervida o suficiente para uma última xícara. Gostaria de se sentar?— Sim, por favor – respondeu o Wen.
A senhorinha serviu Wen Ning com muita educação e gentileza e o General aproveitou para questioná-la a respeito dos monstros e da doença misteriosa.— Oh, meu bem, eu sinto muito - a idosa respondeu. — Eu já sou velha demais para temer a morte, por isso resolvi fechar meus velhos olhos e ouvidos para essa história toda.
"Que pena! Eu tinha grandes expectativas de que o único um estabelecimento que encontrei aberto a noite pudesse me trazer algumas informações relevantes. Agora me arrependo de não ter perguntado em que lugar a mãe do garotinho trabalhava..." - lamentou o Wen em pensamento.
A senhorinha o encarava com interesse. Wen Ning tomava o seu chá de maneira tímida e tensa, sem saber como reagir por estar sendo deliberadamente observado.
Momentos depois, a senhorinha iniciou uma conversa:
— Você é a pessoa que está hospedada na casa dos Bai?Wen Ning surpreendeu-se com a pergunta.
— Como a senhora sabe? - ele questionou.
— As notícias correm, meu jovem... - respondeu a idosa. — Apesar de a casa dele ficar em uma região distante, Bai Renshu recebendo uma visita é algo tão incomum que jamais passaria despercebido. Muitas pessoas entram, saem e tagarelam neste estabelecimento ao longo do dia. Seria difícil uma fofoca tão quente não chegar aos meus ouvidos. Além do mais, eu também ouvi a respeito confusão que houve mais cedo entre "a garota mais bonita da cidade" e o "hospede do Shu" e me descreveram com exatidão as suas roupas. Não foi difícil deduzir...
Wen Ning lançou a ela um olhar ansioso.
— Então, err... será que a senhora também sabe quem... ahn... era outra pessoa que costumava visitar a casa dele?
— Sei sim.
Wen Ning engoliu em seco. Quando ele falou, sua voz saiu um pouco falhada devido o nervosismo perante a expectativa da resposta. Afinal, ainda que Bai Renshu já estivesse morto, seria um baque muito grande se o General descobrisse que ele amava outra pessoa.
— Po-por favor, a senhora poderia me contar?
A idosa assentiu de forma simpática e prontamente respondeu:
— Yan Quon, um médico famoso aqui na cidade.— Ah... entendo.
Wen Ning deixou escapar uma expressão de desgosto.
"Eu já devia ter imaginado..." - ele pensou.
— O que vocês são? Você e o Shu? - perguntou a idosa.
— Amigos – respondeu Wen Ning, de forma apática.
A idosa o observou silenciosamente com um sorriso compreensivo. Após uma longa pausa, ela perguntou:
— Você o ama?
Essa pergunta extremamente pessoal e repentina pegou Wen Ning de surpresa. Ele ficou aturdido, encarando a senhora com seus olhos assustados, sem saber direito o que dizer.
A senhora idosa lhe deu um sorriso bondoso e insistiu:
— Você o ama, não ama?
O General enrubesceu e olhou de viés para o chão.
— Muito... – admitiu o Wen.
A senhora sorriu.
— Eu posso ver isso em seus olhos.
Wen Ning permaneceu em envergonhado silêncio e a idosa continuou:
— Sabe, meu jovem... o Shu raramente passa muito tempo em sua própria casa, mas se ele permaneceu por lá por dias seguidos, conforme eu ouvi falar, e se, acima de tudo, ele permitiu que você permanecesse também, eu acredito que esse sentimento deva ser recíproco.
Wen Ning começou a encarar e mexer nos próprios dedos de um jeito encabulado.
— A senhora acha mesmo? - ele perguntou, enrubescido.
— Eu tenho certeza! E, sabe, jovem, eu fico bem feliz em saber disso. Eu sempre achei que o Shu voltaria a ser o bom garoto que ele era, se um dia encontrasse alguém disposto a ama-lo além das aparências.
— A senhora parece conhecê-lo bem...
— Bom, eu sou uma moradora muito antiga desta cidade, então é natural que eu o conheça. Não somos íntimos, mas eu comprava folhas de chá da mãe dele com regularidade, por isso eu o conheço desde bebê.
Apesar de sua tristeza, Wen Ning se sentiu um pouco animado com a notícia. Afinal, já que não poderia mais desfrutar da companhia de seu amado, ouvir histórias sobre ele ao menos confortaria um pouco o seu coração machucado.
— Verdade? A senhora poderia me falar mais sobre esses dois? - ele perguntou esperançoso.
— Hum... por onde eu começo?
A senhora puxou uma das poltronas baixas que circundavam as mesas e se sentou diante do General enquanto pensava. Depois de ajeitar-se, ela iniciou a sua história:
— Vejamos... como eu disse, ele era um bom garoto. Um pouco travesso, é verdade, mas era muito amável, prestativo e altruísta, constantemente disposto a ajudar a todos e a colocar os interesses dos outros acima dos seus. Desde pequenininho sempre foi muito bonito, espirituoso, esperto e carismático, era o tipo de criança capaz de fazer amolecer até o coração mais endurecido. Enfim... ele era uma gracinha e todos os adultos o adoravam, e por esse exato motivo, as outras crianças se ressentiam dele. Apesar disso, o pequeno Shu era também uma criança muito otimista, que encarava com bons olhos até as maldades que as crianças lhe faziam. Bom... ele teve a quem puxar, sabe? A mãe dele era assim também.
Wen Ning apoiou seus cotovelos na mesa e o rosto nas mãos, ouvindo a tudo com muito interesse. À medida que a senhora ia descrevendo o garoto, Wen Ning dava um sorriso sutil enquanto imaginava Bai Renshu todo fofo e pequenino.
— E quanto a mãe dele? Como era? Como se chamava? Por favor, me conte com detalhes! - pediu o interessado Wen.
A senhora assentiu.
— Ela era uma criatura dócil, compreensiva e gentil que ensinou ao filho a pagar o mal com o bem e a enxergar as pequenas belezas do mundo. Foi também uma jovem muito bondosa e espiritualizada que tinha como filosofia a busca incessante por melhorar as próprias falhas e jamais se permitir julgar as falhas dos outros. Seu nome era Bai Meiling, uma orfã de origem desconhecida que foi adotada aos três anos de idade por um casal já bastante idoso que nunca pôde ter filhos. Os Bai, por sua vez, eram camponeses muito humildes e simplórios, mas que cuidaram da menina com muito amor. Quando se tornaram velhos demais para trabalharem no campo, foi a filha adotiva quem os cuidou em seus últimos anos de vida. Ela não tornou-se médica por falta de estudo, mas acabou adquirindo experiência em aliviar as dores e a curar algumas feridas com chás e ervas enquanto cuidava de seus pais. Mais tarde, Bai Meiling tornou-se uma espécie de "curandeira" que ajudava gratuitamente os doentes que não podiam pagar por remédios ou por um médico de verdade. Ela viveu uma vida modesta na pequena cabana que herdou de seus pais enquanto vendia os chás aromáticos que ela mesma plantava. Certo dia, a moça encontrou, muito ferido, um homem a quem ela cuidou e abrigou sem lhe pedir nada em troca. Bai Meiling não sabia, mas aquele era um rico mercador que desbravava o mundo em seu próprio navio, adquirindo e comercializando raríssimas especiarias. O homem a quem ela salvou, era bastante diferente dos homens daqui: era louro, alto, atlético, de pele e olhos claros e muito atraente e cativante. Bai Meiling também era uma moça muito gentil e bonita e, portanto, com o passar dos dias, os dois foram se apaixonando. O casal manteve um relacionamento romântico durante anos e, entre indas e vindas em suas viagens, o homem aos poucos transformou a pequena cabana de Meiling em uma casa confortável e razoavelmente luxuosa onde ele se hospedava sempre que retornava para a China. Alguns anos mais tarde, Bai Meiling engravidou e deu à luz a uma linda criança de aparência exótica, com traços orientais, olhos muito verdes e cabelos louro-platinados.
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O Legado da Carne
FanficDois anos após tornar-se independente de Wei Wuxian, seu antigo mestre, o ainda temido e odiado "General Fantasma" tornou-se um andarilho solitário que vagava o mundo eliminando monstros e sobrevivendo humildemente de pequenas recompensas. Enquanto...