Voltando à escuridão

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P.O.V Katy

O líquido transparente cai sobre o corpo, levantando o cheio forte e tóxico de produto químico, prendo a respiração e termino de virar o primeiro galão, faço o mesmo com todo o álcool e o segundo frasco de formol, o cobrindo por inteiro. Depois de tanto tempo submerso em água, ele já está inchado e o corte do pescoço limpo, mostrando o músculo dilacerado, assim como a pele arroxeada e os olhos arregalados que adquiriram uma membrana amarela por cima.

As marcas de injetáveis se destacam no braço, talvez heroína ou cocaína diluída no próprio sangue, pensar nisso faz minha garganta apertar. Eu poderia me dopar, passar o resto da minha vida bloqueando tudo o que aconteceu com doses cada vez maiores de pó, é uma opção atrativa demais, e a essa altura nem sei mais o que me impede de fazer isso.

Me afasto da banheira, sentindo o estômago vazio dar várias voltas por conta do forte odor, lavo meu rosto na pia e afasto meus cabelos molhados, vendo o profundo corte na linha do meu couro capilar. Preciso de pontos, agulha e linha para cicatrizar isso de uma maneira descente, mas não posso sair ainda do apartamento ainda, então pego uma caixinha de pontos adesivos na minha bolsa e junto as extremidades da pele, me fazendo cerrar os dentes para não gritar.

Está amanhecendo, mas mantenho todas as janelas fechadas, impedindo a luz de entrar, algo condizente com meu atual estado de espirito, voltando à escuridão.

O diário da Ana que deixei sobre a cama quando cheguei, torna a chamar minha atenção, o pego e saio do quarto, mantendo a porta trancada, não quero a companhia do cadáver do Carl. Sento entre as caixas no primeiro andar, tentando não pensar o que irei fazer com tudo isso que empacotei, a verdade é que não tenho para onde ir, meus planos para o futuro foram destruídos, e permanecer nesse apartamento me soa doloroso.

Abro a primeira página e não há nada além de um desenho, não rabiscos, são traços finos e precisos de uma alameda entre galhos retorcidos, com certeza feito pela mão de alguém que sabia desenhar. Na segunda página amarelada há outro desenho, dessa vez uma rosa formada pelo agrupamento do nome Ana Ehrenberg escrito milhares de vezes. Parece um sobrenome europeu, deve ser da família dela, não sei muito sobre a vida dela antes do Laurent, apenas que provinha de uma forte tradição militar. Há vários versos soltos nas próximas cinco páginas, o tipo de coisa cafona que adolescentes fazem para se expressar, mesmo embaixo da rosa há uma pequena frase.

"Eles dizem que sou rosa, acho que preferia ser espinho".

Certo, não sei o que pensar disso, mas ao ver a data, entendo que ela tinha por volta de quinze anos, então é algo totalmente compreensível.

Pulo toda a parte de desenhos sombrios e frases melodramáticas e chego em algo mais consistente. Uma página inteira de curtos parágrafos numa caligrafia extremamente caprichosa, decorado por várias borboletas desenhadas à caneta.

"Odeio a passarela, odeio essas roupas, odeio como me fotografam e retratam nas revistas, mas antes de tudo odeio ele, então continuo a fazer coisas que eu odeio, porque no final das contas até que não são tão ruins assim. "

"Ibiza é tão quente quanto disseram que seria, acho que gostaria de morar aqui para o resto da minha vida. Kwenie disse que sol demais vai deixar manchas na minha pele, mas eu gosto de como as ondas vem até meu pé e parecem me puxar para dentro do mar, queria que de fato elas conseguissem fazer isso."

Os próximos quatro parágrafos são sobre essa viagem dela à Espanha, e na parte de trás da página tem um recorte de uma revista colado. É ela usando um biquíni de alta costura, sensual demais para alguém na idade dela, seu perfil aristocrático parece quase esculpido em rocha, encarando a câmera com um olhar profundo. Ela era realmente linda, exatamente como os padrões de beleza de qualquer lugar do mundo apreciam.

Anjo Negro [CONCLUÍDO]Onde histórias criam vida. Descubra agora