76- O silêncio (✓)

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"Nada nos torna tão grandes como uma grande dor."

 Alfred de Musset

***

Corvos voavam sobre ela, para longe e com espanto, enquanto a sacerdotisa retirava o colar de seu pescoço. O corpo dela ia envelhecendo, mas seus lábios ainda proferiam as palavras para a noite.

— Medo é para o inverno, quando a neve cai a centenas de metros de profundidade e o vento gélido vem uivando do Norte — Recitava Melisandre, caminhando entre os corpos, rumo à escuridão final — Medo é para a Longa Noite, quando o sol esconde sua face por anos a fio, e pequenas crianças nascem, vivem e morrem em trevas, enquanto lobos gigantes uivam ferozes e famintos, e os caminhantes brancos andam entre as florestas... O que é o medo, meu Senhor?

Sua voz ia ficando pequenina, até falhar, até ser consumida. Os poucos homens que a viram partir, apenas recordavam suas pegadas fundas na neve, que foram se tornando leves até a noite abraçá-la. Então o corpo da mulher se desintegrou, sumindo feito cinzas no ar. E a capa vermelha que a cobria foi jogada para o lado pelo vento agora leve do inverno. 

Melisandre havia partido, mas não jazeria em nenhum lugar. Suas partículas voariam eternamente pelos ares. Seu lugar era nenhum lugar.

***

Os homens levaram muitas horas para recolher todos os corpos e montar as piras de fogo em que os queimariam. Ninguém falava, ninguém chorava, ninguém fazia mais do que trabalhar. A exaustão era quase um alívio. Agradeciam por ela, pois diminuía o peso dos pensamentos.

— O dia não chega. — Pensavam alguns — Por quê? Se os mortos se foram? Por que não clareou?

Jon sabia o motivo. O Rei da Noite ainda vivia e a escuridão só terminaria com a morte dele. Portanto, haveria uma última batalha e Jon teria de ir atrás dela. Era a sua batalha, provavelmente a última de sua vida.

Pilhas e pilhas de corpos foram colocadas nas enormes piras de fogo. Enquanto as chamas subiam, todos permaneciam calados e assim foi até os corpos se desintegrarem. Palavras bonitas foram pronunciadas, mas pareceram vazias para todos ali. Nenhuma cerimônia seria capaz de fazer com que se sentissem melhor. Nem mesmo as lágrimas saíam para aliviar os corações.

Sam não se juntou ao povo. Preferiu estar com o filho, sozinho em um quarto escuro, sem ver nada nem ninguém. Sansa se despediu dos mortos, mas ao se ver sozinha entre a multidão, retornou ao castelo parcialmente destruído, isolando-se também.

Ao longe, Arya arrastava o corpo de Sandor Clegane para dentro de uma cova que ela mesma havia cavado. Ninguém sabia o que ela estava fazendo. Apenas Nymeria a acompanhava. Quando terminou de colocar terra sobre o corpo dele, a garota se deitou sobre a cova.

— Eu prometi que ninguém queimaria você. — Sussurrou, cheia de dores, e logo adormeceu de exaustão na terra macia, tendo a loba a guardar seu sono.

Foram muitas e muitas horas de quietude. A população ficou muito calada, espreitando, se perguntando se poderia mesmo descansar. Nem mesmo os ventos uivavam nas torres e até os corvos ficaram quietos. Em cada quarto, em cada canto, em cada pequeno espaço ocupado por um ser humano, nenhuma palavra era pronunciada.

Todos se recolheram, abraçaram os que ainda viviam e dormiram, dormiram tanto que pensaram ter morrido. Dormiram por quase dois dias, ainda que ninguém tivesse como contar os dias. Dormiram por mais do que alguém poderia acreditar. O Norte caiu em completa escuridão e silêncio, como uma tumba lacrada, como um cemitério imenso dos vivos.

***

Daenerys estava em um quarto na ala que não havia sido destruída por Viserion, sendo cuidada por uma velha criada de Sansa. Ao despertar, depois de longas horas de sono, sentiu-se outra vez mergulhada em um pesadelo. Tremia, febril, fraca, sentindo tudo girar à sua volta. As mortes, a dor e o medo. As lembranças todas vieram com força e ela queria voltar a dormir para esquecer.

— Não saiu mais sangue. — Disse a criada, abaixando o lençol após uma boa olhada — Está de quantas luas, minha senhora?

— Quatro, acredito... Um pouco mais de quatro...

— A semente é forte. — Sorriu tristemente a mulher — Seu bebê vai viver. Só precisa se alimentar melhor. Está tão magra que quase não se nota a criança, senhora.

— Não é isso. — Pensou Dany — É o frio.

Jon abriu a porta do quarto e a mulher baixou a cabeça com timidez e saiu. Jon nunca havia feito ares de senhor em qualquer momento de sua vida, mas seu próprio rosto havia se moldado a essa figura. Ele mesmo não notava como os homens de Winterfell agora se calavam diante dele e como as criadas não o olhavam mais no rosto. Há tempos havia deixado de ser visto como um garoto e menos ainda como um bastardo. Sobretudo, após a grande guerra, isso se tornaria muito mais forte. Sua expressão revelava uma alma destroçada, justa e violenta. Todos se sentiam seguros com ele ali, como não se sentiam desde que Ned Stark fora assassinado.

Jon puxou uma cadeira silenciosamente e se sentou ao lado da cama. Dany não o via há muitas horas. Ele segurou a mão dela, sem olhar em seu rosto e sem nada dizer.

— E o que posso pedir que me diga? — Pensava ela, sentindo as lágrimas encherem os olhos. Também estava destroçada. Ter a mão dele na sua já era uma grande sorte.

Então ela sentiu algo se mover dentro dela, causando um arrepio em seu corpo. As lágrimas não desceram, mas o nó na garganta a fez perder a fala. Dany arregalou os olhos, baixou o lençol com as mãos trêmulas e colocou a mão de Jon abaixo do umbigo. Ele olhou para ela com uma expressão interrogativa, mas quando sentiu seu filho se mover, o coração dele deu uma batida forte, revigorado. Era a primeira vez que eles sentiam.

Ansioso, Jon colocou a outra mão sobre a barriga dela, acariciando devagar, implorando por um pouco mais daquela presença. Era uma vida pulsando naquela tragédia caótica. Era o resquício de esperança que os alimentaria.

Jon e Daenerys permaneceram ali, assustados com aquele breve calor que abraçava seus corações doloridos. Ficaram parados, sem nada dizer um ao outro, apenas esperando outro sinal daquela vida, depois outro e outro... E nunca era suficiente, nunca era...

***

Nota: Não quis mudar a morte da Melisandre porque gostei de como foi na série. Só acrescentei a fala da Velha Ama pra ela.
Usei esse capítulo "depressivo" para mostrar o abatimento de todos após a guerra e o bebê se mexendo eu coloquei para quebrar o clima de velório, como sinal de esperança. Me policio muito para não destoar de Game of Thrones construindo cenas fofas, porque se deixar eu saio de George Martin para Nicholas Sparks em dois segundos.

Final alternativo para GOT (concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora