63. ALANA

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Todo esse tempo aqui sozinha tentando ocupar minha mente com várias outras coisas mas no final sempre volto ao mesmo pensamento.
Assisto a TV mas não consigo me concentrar na programação. Mudo o canal procurando por algo mais interessante e nada. Quero sair desse lugar. Confiro o soro no meu braço e percebo que já acabou então aperto o botão para chamar a enfermeira. Menos de cinco minutos ela aparece no quarto.
- Olá querida, em que posso te ajudar?
- O soro - olho pra cima - acabou.
- Ah sim - ela se aproxima - vou avisar ao seu médico para que ele possa liberar você.
- Tá.
Assim que ela saí Josephine entra carregando uma mochila e quando ela se aproxima não me seguro e praticamente me jogo em seus braços aos prantos.
- Ei, vai ficar tudo bem Alana - ela me abraça forte - estou aqui, nós estamos aqui.
- Eu amo o Kalel mas não consigo deixar que ele se aproxime. Meu coração o quer por perto mas o meu corpo o rejeita.
- Isso vai passar Alana. Tudo vai se resolver.
- Me desculpa agir assim - a afasto - eu precisava abraçar alguém.
- Não precisa se desculpar. Sempre que precisar de um abraço saiba que eu estou aqui - ela sorri.
- Obrigada - eu a olho - e Kalel como está?
- Não vou mentir, ele está arrasado e com muito medo de perder você.
- Não sei o que está acontecendo comigo.
- Você está traumatizada é normal depois do que houve, mas tenho certeza de que ele está pronto pra superar isso junto com você - ela passa a mão por meu cabelo - então, aqui está algumas roupas minhas e um tênis pra você se trocar - ela me entrega a bolsa - você deve ser liberada em breve e vim buscar você. Kalel disse que você vai ficar lá em casa até estar melhor.
- Não sei se é uma boa idéia.
- Se está preocupada com meus pais, deixa eles com a gente ok?
- Não quero incomodar.
- Você não vai - sua voz é gentil.
- Bom senhorita Alana - a enfermeira entra - está liberada - ela me entrega um papel - só passar na recepção e apresentar esse papel ok? - seus documentos estão com o seu namorado e você precisa voltar amanhã para um acompanhamento piscologico ok? - Faço que sim com a cabeça - nos vemos amanhã então Alana - ela sorri.
- Até amanhã.
A enfermeira saí do quarto e eu vou para o banheiro me trocar. Ao tirar as roupas do hospital analiso meu corpo no espelho. Ele está com vários ematomas, minha pele clara agora está tomada por um tom roxo em vários pontos. Me sinto suja e não suporto ver minha imagem refletida no espelho. Entro no chuveiro torcendo para que a sensação de sujeira deixe o meu corpo quando esfrego com força cada parte do meu corpo derramando lágrimas.
Não sei ao certo quanto tempo estou aqui tentando me limpar mas deve ser muito tempo já que Josephine decide entrar.
- Tá tudo bem Alana?
- Sim, só quero me limpar, estou suja.
Ela me encara com o olhar assustado e só aí percebo o quão vermelha minha pele está devido a força que usei para me limpar.
- Vem, você já está limpa - ela tenta manter a discrição.
- Não estou - insisto.
- Eu ajudo você - ela se aproxima e me ajuda a esfregar mas dessa vez com mais suavidade - pronto, agora vamos sair.
Eu concordo, ela me entrega a toalha. Em seguida me enxugo e visto a roupa que ela trouxe. Um moletom de cor cinza e um All star. O visto rápido e prendo os cabelos.
- Pronto? Podemos ir? - Josephine se aproxima.
Faço que sim e juntas saímos do quarto rumo a saída.
Chego a recepção e entrego o papel que me foi orientada. A atendente bate um carimbo e em seguida estou liberada. Sigo Josephine pelos corredores evitando qualquer contato físico, sinto que todos aqui sabem o que aconteceu comigo e a vergonha toma conta de mim.
Mais alguns passos e estávamos no estacionamento. Levanto a cabeça para olhar a minha frente e meu olhos azuis se encontram com os olhos verdes mais lindos que já vi na vida. Quero correr e me jogar em seus braços mas ao invés de fazer isso fico paralisada no meio do caminho.
- Tá tudo bem? - Josephine acaricia meu braço.
- Ele vai no mesmo carro que a gente?
- Sim!
- Não consigo - me afasto.
- Tá bom ele não vai ok? - ela tenta me acalmar - vou pedir a ele que chame um Uber.
- Não posso ir pra sua casa, não vou conseguir dividir o mesmo espaço com ele.
- Nossa casa é muito grande vou me certificar de que você não o encontre enquanto não estiver à vontade tudo bem?
- Não pode fazer isso é a casa dele Jô.
- Alana, ele vai entender eu sei que vai pois só pensa no seu melhor agora.
- Desculpa - meus olhos se enchem de lágrimas.
- Tá tudo bem. Me espera aqui, vou falar com ele.
Josphine caminha até Kalel e mantém uma conversa da qual não consigo ouvir. Percebo que seus olhos se enchem de lágrimas e ele não me olha. Sinto um aperto no peito e uma vontade de correr até ele e dizer que está tudo bem, mas o meu corpo não me obedece e permaneço parada no mesmo lugar. Josephine tira o celular do bolso e o entrega a Kalel. Ele se afasta sem nem se quer olhar pra mim. O observo se afastar e quando dou por mim Josephine está segurando meu braço e me levando para o carro.
O caminho é um pouco longo e o permaneço em silêncio por todo o trajeto. Sinto uma enorme gratidão por Josephine entender a minha falta de comunicação e não forçar nenhuma conversa.
Chegamos a casa e sinto um sentimento de nostalgia dominar o meus pensamentos.
Aquele quintal, aquela piscina onde aconteceram os melhores momentos com o amor da minha vida.
- Vem, vou te levar até meu quarto- Josephine me tira dos meus pensamentos - Esse aqui é o meu quarto - ela abre a porta - você vai ficar aqui tudo bem?
- E você? - olho ao redor.
- Vou ficar nos quarto de hóspedes no andar debaixo.
- Eu posso ficar lá.
- Não pode ficar aqui. Esse é o melhor quarto da casa.
- Tem certeza que não se importa? Eu não quero atrapalhar.
- Não esquenta com isso - ela acaricia meu braço - suas roupas e seu celular estão naquela mala, pode guardar na cômoda se quiser - a olho confusa - Kalel buscou elas antes de vir pra casa.
- Ah - é só o que consigo responder.
- Bom, descanse agora. Qualquer coisa pode me ligar.
- Muito obrigada. Vocês estão sendo incríveis.
- Não precisa agradecer - ela sorri.
E rapidamente muda o semblante ao ouvir vozes exaltadas vindo do andar debaixo. Permanecemos em silêncio ouvindo tudo o que era dito.
" - Essa garota não tem uma casa? Num dia tá no chalé, depois não sei onde e agora vem parar aqui? - a mãe de Kalel grita.
- Isso não lhe diz respeito mãe. Ela passou por momentos difíceis e você deveria ter um pouco de empatia e sororidade.
- Essa garota ainda vai pegar toda a sua grana Kalel.
- Você não a conhece e não admito que fale assim dela."
- Eu não posso ficar aqui Jô - a encaro.
- Pode sim - ela me segura pelos ombros - eles vão se acertar. Meus pais podem ser pessoas horríveis as vezes mas vão entender o que você passou e o porquê de estarmos fazendo isso.
- Eu não quero ser problema pra vocês.
- Não vai ser. Aqui no meu quarto você tem absolutamente tudo. Tem um banheiro, se não quiser descer pra jantar conosco você pode comer aqui mesmo. Juro, não tem problema - ela me abraça - vou deixar você descansar agora, qualquer coisa pode me chamar tá bom?
- Tá bom - abro um sorriso sem graça.
Josephine saí do quarto e eu me deito na cama. Tem exatos trinta minutos que o silêncio se instalou na casa. Não vejo Kalel desde aquela hora no estacionamento e ele não veio até o quarto falar comigo. Está respeitando meu momento e apesar de me sentir oca por dentro eu o amo ainda mais por isso.

...

Os dias passam e começo meu acompanhamento com a psicóloga.
Também fui a polícia prestar depoimento e fazer corpo de delito. Confesso que foi a pior parte disso tudo. Ter que reviver tudo aquilo e narrar meus momentos de terror á um desconhecido, mas era necessário para que aquele monstro pagasse pelo que fez à mim.
Os roxos e as feridas já estão praticamente curados e não vejo Kalel há um bom tempo. Sei que ele tem evitado me ver já que ainda não me sinto pronta. Não voltei a faculdade e nem ao trabalho desde então, mas Josephine disse que Kalel cuidou de tudo. Recebi algumas mensagens de Jéssica e do Alex perguntando como eu estava, pra eles Kalel contou que eu havia sofrido um acidente eu não desmenti, ainda não estou pronta para que outras pessoas saibam o que realmente aconteceu.
Confesso que nos primeiros dias não foi nada fácil, eu chorava todas as noites e me sentia suja e culpada por tudo o que houve. Não conseguia dormir e nem comer direito o que resultou na minha perca de peso.
As vezes tinha a impressão de que Kalel estava ao lado de fora tentando me ouvir mas talvez fosse só impressão minha mesmo.
Os pais dele enfim aceitaram que eu ficasse aqui e após o dia da minha chegada eu nunca mais ouvi eles reclamando de nada. Mas eu sou praticamente invisível aqui, só saio do quarto para ir ao médico e sempre quando eles não estão.
Josephine sempre passava suas horas disponíveis comigo e era ela quem me levava a terapia.
Hoje consigo sair sozinha sem entrar em pânico mas ela insisti em me acompanhar e eu gosto de sua companhia.
Meu pai e eu nos falamos regulamente ao telefone e como Kalel me prometeu ele não disse nada ao meu pai e preferi deixar assim. Ainda me sinto triste mas agora pronta pra seguir em frente.
- Oi Alana, como se sente hoje? - Josephine se senta ao meu lado da cama.
- Bem, eu acho.
- Tá fazendo o quê? - ela pega uma das folhas espalhadas pela cama e analisa.
- Colocando as coisas da faculdade em dia.
- Ah sim. Você acha que já está pronta pra voltar?
- Ainda não sei, mas minha psicóloga diz que não posso ficar trancafiada num quarto pra sempre - abro um sorriso gentil.
- E ela está certa, mas tudo no seu tempo ok?
- Claro - concordo - e o Kalel? - meu coração se acelera ao perguntar sobre ele.
- Está apenas existindo Alana - ela me encara - eu não quero mentir pra você. Desde que isso tudo aconteceu e vocês se afastaram ele tem estado triste. Continua fazendo suas coisas, mas não tem mais brilho.
- Eu.. eu sinto muito - abaixo a cabeça.
- A culpa não é sua mas sim das circunstâncias e ele sabe disso, só está tentando seguir em frente.
- Acho que vou voltar pra casa do meu pai amanhã de manhã.
- Mas já?
- Sim Josephine tem quase duas semanas que estou aqui - abro um sorriso.
- Pode ficar mais se quiser.
- Tá tudo bem, preciso reaprender a viver em sociedade - abro um sorriso sincero.
- Eu vou sentir sua falta - ela cutuca as unhas.
- Eu também vou sentir muito a sua - a abraço.
- Preciso sair agora pra resolver umas coisas mais tarde passo aqui ok?
- Tudo bem.
Ela se levanta e saí do quarto me deixando sozinha com os meus pensamentos. Falta apenas uma semana para a apresentação do trabalho de inglês e eu ainda não preparei nenhuma música. Pego meu celular e começo a analisar as músicas que tenho na minha playlist mas nenhuma parece servir. Pulo de música em música até que desisto, bloqueio a tela do celular e ouço um som de violão invadir todo o andar de cima. Tem muito tempo que não ouço esse som, essa música. Meus olhos se enchem de lágrimas quando percebo que é a primeira música que Kalel cantou pra mim naquela chamada de vídeo. Sinto um aperto no peito quando ouço sua voz.
Tudo em mim se ascende e quando dou por mim estou na porta de seu quarto, parada desfrutando do som incrível de sua voz. A porta está aberta e ele está tão concentrado que não percebe minha presença e prefiro que permaneça assim.
Não consigo conter as lágrimas ao ver ele depois de tanto tempo que pra mim foram como anos.
Ele está cabisbaixo e a sua voz carrega tanta tristeza ao cantar a música que meu peito dói. Seus cabelos estão ainda maiores e a barba por fazer. Ele parece mais magro e um pouco desleixado mas continua lindo.
Seus cabelos loiros caem sobre seu rosto enquanto ele toca seu violão e sinto meu estômago borbulhar como se houvesse várias borboletas lá dentro.
Ele para de tocar por um segundo e é exatamente nesse momento que deixo escapar um soluço.
Ele olha pra mim e eu o encaro.
- Alana? - seus olhos verdes me encaram assustados.

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