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Mari POV

Por baixo do sono, ouvi uma voz suave cantarolar algo, bem baixinho, ao meu lado.

Essa voz foi me guiando devagar para fora da espécie de inércia na qual estava imersa naquele momento.

Aos poucos, meus sentidos foram voltando, meus olhos foram se abrindo e a visão, foi ficando menos turva.

A voz aumentava o tom, à medida em que eu despertava um pouco mais. Até que, pude perceber de quem era aquele canto.

Dona Lúcia estava ao meu lado na cama. O quarto tinha as luzes apagadas, mas não estava escuro por conta disso. A janela aberta deixava entrar as luzes da rua, das casas vizinhas e dos postes. Isso é, dos poucos que ainda funcionavam.

Além dessas, existia ainda uma outra fonte de luz que, mesmo não sendo elétrica como as outras, parecia ser a que detinha o brilho mais forte. Vinha de um pequeno altar de madeira à cabeceira da cama em que eu tava deitada. Brilhava no topo de uma grande vela branca, que era cercada por diversos terços e imagens de santos que eu não reconhecia, mas que pareciam ter peles "escuras" demais para serem admitidos pela igreja europeia como santos católicos. Então, assumi serem de outra religião.

Dona Lúcia parecia rezar sob o brilho da vela. Mas sua reza era a cantiga que me despertou.

Cantava em uma língua estranha pra mim. Mas que ela parecia conhecer bem.

Dona Lúcia: Omolu a fá rà we we (Omolu, abençoe as nossas cabeças raspadas e nos livre das doenças)
Fá rà fá rà fá ro (Cobre nossas cabeças raspadas e abençoadas por vós)
Ji ja Pepe (Venha abençoar nossa altar com sua presença)
E lò obi wa re ((Venha cortar o Obi que proteje a nossa existência)...- sua voz estava rouca, mas era doce, e cantava com amor.

Senti paz ouvindo. Tanta que não me atrevi a atrapalhar.

Então, fiquei em silêncio, olhando o céu estrelado exposto na janela e pensando em tudo o que tinha acontecido, me perguntando quanto tempo será que eu tinha dormido...

Dormido... não. Não dormi. Desmaiei.

Lembrei desse detalhe em alguns instantes e logo senti doer uma pequena parte da minha testa, onde percebi ter um pano branco em cima.

Estava molhado com alguma coisa. Não parecia ser água. Mas também não tinha cheiro ou cor.

Também não me importava. Estava atordoada demais para me preocupar com o conteúdo daquele pano.

Outras lembranças voltavam à minha mente pouco a pouco...

E Precisei respirar fundo para controlar a raiva que senti ao lembrar o porquê de estar aqui.

Tinham me trazido contra a minha vontade. Com certeza Arcanjo achou uma delícia o fato de eu ter desmaiado logo de uma vez e não ter sido capaz de me opor ao cárcere que ele estava me impondo.

Porco desgraçado...! Me dava nojo só de pensar nele.

Não que antes eu já não sentisse o mesmo nas ocasiões raras em que me dava o trabalho de pensar naquele idiota. Mas agora, tudo havia aumentado. E nao era pra menos.

Mas, o sentimento de impotência se sobrepôs ao da raiva e eu...

Apenas....

Senti tristeza. Uma fria e amarga tristeza.

E esta, por sua vez, era fruto da saudade que tive de poder decidir as coisas sem tanta complexidade envolvida.

Sem ter que suportar o Arcanjo ou o Grego se metendo nas nossas vidas a todo momento, como se fossem nossos donos.

No alto do morro...Onde histórias criam vida. Descubra agora