A moça do quadro

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  Não sei quanto tempo fiquei ali. Depois de tantas lágrimas, provavelmente cochilei.
  O certo é que já era madrugada quando decidi sair. Mas quando me aproximei da porta, ouvi passos na galeria de artes.
  Encostei na porta para ouvir melhor.
  Dois homens estavam conversando, eu me esforcei para identificar as vozes. Era Thomas e seu pai, George, eles estavam andando pela sala e discutiam algo.
  -- eu entendo, meu filho...-- George dizia, com paciência.-- mas você precisa seguir em frente!
  -- seguir em frente como? Eu não sei nem quem eu sou!-- rebateu Thomas , um pouco alterado.
  -- filho, olhe para isso. Olhe essa sala. Olhe suas pinturas. Você está recuperando, meu filho. Logo encontrará uma esposa e...
  -- meu pai, me escute. Eu não consigo amar ninguém!-- ele desabafou e sua voz se elevou.-- não me venha apresentar mais donzelas...
  -- certo, certo... e aquela moça que estava contigo? Qual o nome dela, Amélia?
  -- sim, Amélia. É minha assistente.
  -- assistente? Tudo bem. Mas eu já te apresentei várias moças, de boas famílias. Você precisa se esforçar para seguir sua vida.
  -- nenhuma moça vai querer se casar com um homem que perdeu anos de sua vida. Eu simplesmente não me lembro! Eu sou um homem feito de fragmentos! Nenhuma mulher suportaria isso!

  Eu respirei fundo, sentindo toda a angústia em sua voz. Thomas estava destruído. Dilacerado.
  Então as vozes foram ficando distantes até que sumiram. Eles saíram da sala.
  Aguardei um pouco, para ter certeza e então saí da sala anexa. Andei em silêncio pela sala de artes e não havia ninguém ali.
  O baile tinha terminado, pois já era madrugada e o silêncio reinava. Podia ouvir o som de alguns criados iniciando a limpeza do salão de baile.

  Saí pelos corredores, esperando que ninguém me visse ali. Tinha fugido do baile e me escondido, certamente alguém procurou por mim. Mas eu não queria ser encontrada.
  Andei pelo corredor a caminho das escadas para ir ao meu quarto.
  Antes que subisse as escadas, ouvi passos no corredor, em direção a sala de artes. Então voltei, para ver o que era.
  Quando cheguei lá, Thomas estava sentado no chão, em frente ao nosso quadro. Sem paletó, apenas com sua camisa branca, com os primeiros botões desabotoados e as mangas dobradas nos cotovelos. Sua aparência toda estava estranhamente sensual de uma forma que eu não entendia porque.
  Ele voltou seu olhar para mim e eu vi em seus olhos que havia chorado. Pelo visto não foi só eu que tinha chorado. O choro tinha se aproveitado de alguns corações.
  -- foi uma longa noite -- eu falei, me aproximando dele.
  -- sim, foi -- ele respondeu, dando um gole de sua bebida.
  Seus cabelos estavam levemente desgrenhados de uma maneira sensual e apesar de tudo, Thomas estava realmente atraente.
  Sentei ao seu lado, olhando para o quadro a nossa frente.
  -- eu sei que não é apropriado, mas quer uma bebida?-- ele ofereceu sua taça de vinho.
  -- não, obrigada.-- eu neguei, voltando minha atenção para o quadro -- essa pintura não estava aí antes.
  -- meu pai me trouxe. Foi uma das minhas primeiras pinturas -- ele comentou, olhando para ela também.
  -- ficou muito bonita -- eu disse, me aproximando mais dele.
  Thomas estava exalando sensualidade e eu queria estar próxima a ele. Desejava sua presença, seu toque e seu cheiro. Ao menos isso para saciar minha sede.
  Ele percebeu e me encarou.
  -- o que está fazendo?-- ele perguntou, me olhando nos olhos. -- pensei que tinha me dito que queria limites.
  -- foi você que pediu para nos afastarmos -- eu respondi, me sentindo um pouco rejeitada.
  -- Amélia...-- ele sussurrou se inclinando em minha direção.
  Nossos rosto estavam perigosamente próximos e eu podia sentir o calor de sua respiração e o cheiro de vinho em seu hálito.
  -- eu não posso...isso não é apropriado...-- ele continuou, se esforçando para se afastar.
  -- e por que não? Por que eu sou sua assistente?-- insisti, com o rosto ardendo com a rejeição.
  -- porque eu já tenho alguém!-- ele exclamou, se levantando com pressa, mas fez uma pausa e apontou para o quadro e continuou:-- está vendo essa moça aqui? Eu a amo com todas as minhas forças! É a ela que eu jurei amar até meu último suspiro!
  As lágrimas surgiram em meus olhos e o choro subiu a minha garganta. Uma nova onda de angústia ameaçava me invadir.
  -- eu sinto muito te rejeitar, Amélia. Por mais que você seja atraente... Eu não consigo amar outra pessoa!-- ele exclamou, passando os dedos entre os cabelos bagunçados.-- eu não posso amar...
  Eu me levantei, com certa dificuldade. Respirei fundo, tomando coragem e me aproximei dele.
  Thomas me olhou e seus olhos estavam cheios de amargura.
  -- então quem é ela, Thomas?-- eu questionei, com as lágrimas escorrendo.
  Ele gaguejou, e não respondeu de imediato. Depois sussurrou, com a voz angustiada:
  -- eu não sei... Eu não me lembro. Eu fui ferido na França, naquele maldito exército! Perdi grande parte da minha memória e tudo que eu sou hoje é um amaranhado de lembranças sem sentido.-- ele passou os dedos entre os cabelos que teimavam em cair em seu rosto, e ergueu a voz, continuando a desabafar:-- Mas eu sei que a amo. Eu me lembro de amar ela. Eu me lembro de segurar suas mãos e lhe jurar amor!
  Eu engoli o choro que subia pela minha garganta, respirei fundo e desabafei, enfiando a mão no bolso:
  -- essa moça do quadro sou eu, Thomas. Você pode não se lembrar. Mas eu me lembro de você.
  O choque em seus olhos não pode ser descrito.
  -- nos conhecemos em um baile, após uma Opera. Eu era uma simples dama de companhia e mesmo assim você se apaixonou por mim -- exclamei, desistindo de segurar o choro que estava prestes a ser derramado-- você foi atrás de mim e me encontrou! Sem ter muito tempo para ficar juntos, mas mesmo assim nós dois nos apaixonamos! Você pintou esse quadro em Norwich, e , desde aquela época, eu era sua assistente! Eu estava contigo lá!
  Thomas levou a mão a testa, incrédulo. Caminhou pela galeria, tentando assimilar tudo. Eu estava desesperada para que ele acreditasse em mim.
  -- impossível...-- ele murmurou, duvidando de tudo ao seu redor.
  -- acredite em mim... Eu não entendi porque você não me reconheceu. Pensei que eu não tinha significado nada para você. Eu te esperei por muito tempo! Pensei que estivesse morto!-- eu comecei a falar sem parar, deixando o choro sair junto com as palavras -- eu chorei por você durante anos! Mal pude acreditar quando te vi!
  -- se é verdade, por que não disse nada? Você só pode estar se aproveitando da situação!-- ele se irritou, ainda sem rumo.
  -- você chegou aqui naquela madrugada chuvosa e não te reconheci de imediato. Apenas na manhã seguinte que soube que era você. Mas como não me reconheceu, eu temi que não tivesse significado nada para você, a ponto de não lembrar do meu rosto.

  Thomas passou os dedos entre os cabelos novamente, perdido em seus pensamentos. Esfregou os olhos como se quisesse acordar de um pesadelo.
  -- não pode ser... -- ele resmungou, choroso -- eu não acredito!
  Eu, então, retirei o relógio de bolso que ele tinha me dado, sete anos atrás. Mostrei a ele, enquanto as lágrimas caíam.
  -- meu relógio de bolso... É uma...-- ele reconheceu de imediato, surpreso.
  -- jóia de família. Você me deu, antes de ir para a França. E eu te prometi que guardaria comigo para sempre.
  Thomas pegou o relógio em sua mão, analisando seus detalhes, admirou o brasão dos Cumberland entalhado e o objeto completo.
  -- eu me lembro que meu avô me deu isto, quando era um menino ainda. Eu o levava para todo lugar -- ele comentou, olhando em meus olhos -- meu pai pensou que eu tivesse perdido na França, já que eu não me lembrava onde estava... Mas depois de todo esse tempo, Amélia, estava com você.
  Eu sequei minhas bochechas, úmidas pelas lágrimas, concordando com a cabeça.
  Thomas olhou para o quadro e voltou-se para mim.
  -- é você, Amélia... É realmente você!-- ele sussurrou, se aproximando de mim, colocou o relógio em minha mão e a levou ao seus lábios, beijando delicadamente -- é por isso que você mexe tanto comigo... É você a minha amada...
  -- sim, sou eu...-- eu respondi, um sussurro, enquanto encostamos nossas testas.
  -- eu pensei que jamais te reencontraria... Oh, minha querida...eu a amo...
  Thomas, então, se afastou um pouco, olhando em meu rosto, como se quisesse se lembrar de cada detalhe dele.
  -- quando te vi, com esse vestido magnífico e essas jóias, pensei que era a coisa deslumbrante que eu já tinha visto na minha vida inteira...-- ele confessou, acariciando meu rosto -- Amélia Pevensie, saiba que eu não esqueci do nosso amor. Eu posso ter esquecido de seu rosto e de seu nome, mas eu ainda me lembro de te amar ardentemente.
  -- eu te esperei, Thomas... Esperei por notícias, esperei por você -- sussurrei, deslizando minha mão pelo seu rosto e sua barba -- infelizmente, as notícias que chegaram foram cruéis... Eu chorei por você por anos!
  Ele então me abraçou. Seus braços me envolveram em um abraço forte e quente. Nossos corações batiam desenfreados em nossos peitos. Eu não pude segurar as lágrimas que caiam.
  -- eu sinto muito... Eu te procurei, quando voltei! Mas como procurar alguém que eu não sabia o nome? Nem seu rosto? -- ele se afastou, segurando meu rosto entre as mãos -- meu pai pensava que eu estava louco! Ninguém acreditou em mim, quando eu disse que amava alguém, mas não lembrava quem. Eu me lembro da alegria de te ver, a sensação de beijar sua mão... Me lembro de pintar você nesse quadro. Eu me lembro do nosso beijo! Oh, céus, Amélia! Eu me lembro de te amar com todas as minhas forças!
  Meu coração estava cheio de amor, eu sentia a alegria dentro de mim e não podia acreditar no que estava acontecendo. Thomas estava ali, confessando todo seu amor.
  Olhei em seus olhos, cheios de paixão.
  Sem pensar duas vezes, eu me inclinei e o beijei. Precisei erguer na ponta dos pés para segurar em seu pescoço e beija-lo ardentemente.
  Thomas envolveu seus braços em minha cintura e retribuiu o beijo, me arrebatando os sentidos. Naquele instante, nada mais importava. Eu estava em seus braços, finalmente.
  Eu amava a sensação de seus lábios nos meus, seus braços fortes ao meu redor e meu coração batendo contra seu peito.
  Ele se afastou, de repente.
  -- por favor, me diga que não estou sonhando -- ele pediu, sorrindo.
  -- eu espero que não -- respondi, com o corpo queimando de desejo.
  -- oh, Amélia, minha amada...-- ele sussurrou, se aproximando novamente -- por favor, isso não é apropriado. Vá para seus aposentos e amanhã nos falamos, quando estivermos mais calmos.
  -- mas eu quero ficar...
  -- eu já tomei bem mais do que uma taça de vinho, querida... Posso fazer algo que vamos nos arrepender amanhã. -- ele confessou, se afastando -- por favor, quero estar sóbrio quando ouvir suas juras de amor novamente...
  Eu concordei e sai da sala.
  Caminhei rapidamente pelos corredores e escadas até o meu quarto. Fechei a porta atrás de mim e pude sorrir verdadeiramente quando estive a sós

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