Na Biblioteca

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  Quando as finas damas começaram a se reunir para o tal recital de poesia. Eu procurei uma forma de escapar daquilo. Silenciosamente, me despedi de Lady Clarisse e deixei o local.
  Caminhei entre os corredores até a imensa porta de madeira, detalhadamente entalhada. Estava entreaberta e eu pude ver Thomas, que me esperava em uma das poltronas, com um livro nas mãos.
  Empurrei a porta da biblioteca e ele sorriu quando me viu.
  -- estava à sua espera.
  -- lamento se te fiz esperar -- me desculpei, fechando a porta atrás de mim.
  -- oh, espero você a tanto tempo, minha querida... Eu te esperava antes de me lembrar de você.-- ele respondeu, vindo ao meu encontro.

  Oh, Deus, como eu amava aquele olhar. Thomas me olhava com devoção, da mesma maneira que eu. Mais alguns passos e estávamos frente a frente, e antes de dizer qualquer coisa, eu o beijei.
  Assim, inesperadamente.
  Ele não esperava por um beijo. Sua primeira reação foi um susto, porém, um segundo depois, ele retribuiu o beijo com paixão. Puxou minha cintura, me trazendo para perto de si.
  Instintivamente, corri meus dedos entre seus cabelos macios. Eu pensava constantemente naqueles fios escuros e rebeldes, toda chance que eu tinha de tocá-los, não podia desperdiçar.
  Seus lábios nos meus eram quentes e exigentes. Tomavam de mim toda a paixão que eu lhe devia. Sua barba roçava em minha pele, causando um ardor inexplicável.
  Meu coração batia acelerado no meu peito e o desejo dentro de mim só crescia.

  Em um lampejo de juízo, eu retornei a mim. Me afastei lentamente, olhando para seus olhos embriagados de desejo.
  -- eu realmente não esperava por isso -- ele sussurrou, com um riso sensível.
  -- eu não estava planejando... É só que... -- eu procurei palavras para responder -- eu não pude resistir.
  -- eu entendo como se sente... Estou constantemente resistindo a fazer o mesmo, todas as vezes que se aproxima de mim... É exaustivo.
  -- talvez não precisamos mais resistir.
  Thomas sorriu, confuso.
  -- o que está dizendo?
  -- estive a manhã toda com as finas e elegantes damas da nobreza. E confesso que foi bem melhor do que eu imaginava.
  Ele caminhou para sua poltrona, segurando minha mão para que eu o seguisse. Sentei-me bem ao seu lado.
  -- fico feliz... Mas o que significa?
  -- ao contrário de meus pensamentos pessimistas, a nobreza não comenta mal de nós. O povo não me maldiz. Os boatos são do bem.
  Thomas me encarou, em silêncio.
  -- aquelas mulheres, que agora estão no recital de poesia, estão torcendo para que fiquemos juntos. As pessoas que nos vêem juntos não comentam mal. Pelo contrário, todos acreditam que formamos um belo casal.
  Então, Thomas abriu um sorriso tímido.
  -- realmente comentam sobre nós?
  -- sim. Na época do baile de Cumberland's Hall, ficaram muito curiosos sobre mim, mas ninguém me conhecia. Agora me conheceram e disseram que ficamos lindos juntos.
  -- bem, isso é verdade. Nós dois juntos somos uma obra de arte. E olha que de arte nós entendemos bem.-- ele brincou, sorridente.
  -- sim, meu amor...
  Olhei para ele, animado. Senti um frio na barriga. Não imaginava que aquilo iria acontecer. Não tão rápido.
  Engoli em seco, controlando a ansiedade.
  -- podemos oficializar nosso relacionamento, Thomas.
  Thomas não disse nada, apenas levou as mãos ao rosto, sorrindo. E logo depois se inclinou para me abraçar carinhosamente. Encostei minha cabeça em seu peito enquanto seus braços me seguravam com afeto.
  -- finalmente -- ele sussurrou, quase inaudível.
  -- com a chegada da primavera, podemos fazer um baile em Cumberland's Hall. Eu estarei do seu lado.
  -- o que você quiser. Eu faço o que você quiser. Eu só quero que me aceite -- ele rebateu, ansioso -- minha querida... O que você quiser, eu farei.
  Eu não respondi. Apenas fiquei dentro de seu abraço. Sentindo seu cheiro confortável e sua respiração. Tinha esperado por isso por sete anos. E adiado por mais alguns meses. Mas eu finalmente estava nos braços dele, sem culpa ou medo.
  -- precisamos contar a Lady Clarisse -- ele sugeriu -- minha tia vai ficar muito animada com isso. Um noivado em Cumberland's Hall!
  -- sim, ela vai. Eu contei a ela nossa história. Ou melhor, partes da história ela mesma tinha descoberto. Então fui obrigada a contar com detalhes. Agora ela está aguardando ansiosamente por uma declaração sua.
  Ele se afastou um pouco.
  -- contou nossa história a minha tia?
  -- sim, contei. Ela é uma mulher inteligente. Estava juntando as peças.
  -- fico tranquilo sabendo que não precisarei fazer isso. Já que não me lembro de quase nada.
  Segurei em suas mãos com carinho.
  Aquilo ainda o machucava demais.
  -- não contarei a ninguém. Eu juro. Podemos inventar uma boa história para contar aos curiosos. Omitir parte da história.-- sugeri, percebendo o olhar triste que ele tinha.
  -- temos uma bela história, Amélia.
  -- sim, mas é nossa. Aos curiosos da nobreza, podemos manter a versão de Lady Clarisse.
  -- versão de minha tia?
  -- fomos questionadas, mais cedo, sobre como entrei em Cumberland's Hall. Sua tia contou uma versão diferente.
  Ele riu, curioso e se ajeitou na poltrona de volta.
  -- estou ansioso para ouvir essa versão de minha tia.
  -- ela disse que me encontrou, dois meses após a morte de seu esposo. Então, eu fiquei em Cumberland's Hall para cuidar dela durante seu luto e ela não me deixou ir embora. Segundo ela, eu conhecia muito bem a mansão quando você chegou e te ajudei na adaptação. Por isso somos próximos.
  Thomas balançou a cabeça positivamente, com um sorriso nos lábios.
  -- devo admitir que ela tem criatividade.-- ele brincou.
  -- e um rápido raciocínio. Essa história surgiu do nada. Uma das senhoras perguntou sobre mim e ela imediatamente contou isso.
  -- Lady Clarisse me surpreende a cada dia.
  -- a mim também.
  -- você realmente cuidou dela, não foi?-- ele perguntou, sincero.
  -- sim. Quando cheguei a Cumberland's Hall, ela estava muito mal. Estava reclusa. A mansão estava fechada para visitação. Ela passava longos dias em seu quarto. Eu fui até ela e mostrei que ainda havia motivos para viver. O luto é doloroso, mas precisa passar. Cada fase de cada vez.
  Thomas piscou lentamente.
  -- você diz isso como experiência própria.
  -- sim. Quando recebi a triste notícia de sua morte, eu também desejei morrer. Não havia esperança. Pelo menos não naquele momento. Mas eu não tinha escolha a não ser seguir em frente. -- desabafei, com amargura -- Cada fase do luto foi esmagadora, meu bem. Mas quando aceitei, foi libertador. Eu chorava de saudades, não de inconformação.
  Ele segurou minha mão.
  -- eu sinto muito.
  -- estou feliz que esteja aqui. Estou feliz que tudo foi um terrível engano. Não consigo imaginar a minha vida sem você, agora.
  -- eu vivi sete anos sem você. Sem sequer me lembrar de você. E foram os piores anos de minha vida. Por favor, não me deixe. Fique comigo, Amélia.
  -- para sempre, meu amor.
  Thomas ficou um momento em silêncio, pensativo. Dei-lhe aquele instante que ele precisava. Não demorou muito e ele se virou para mim.
  -- escreverei para meu pai.
  -- excelente.
  -- ele precisa estar comigo por alguns dias. Desejo que nosso casamento seja uma cerimônia digna de Cumberland's Hall e, principalmente, de você, querida Amélia. Preciso ser um bom anfitrião. Preciso conhecer meus convidados.
  -- tem razão. É uma boa ideia que ele venha. Não se esqueça também de Lady Clarisse. Ela conhece muito da nobreza de Suffolk.
  -- sim, sim. Eu preciso me lembrar de algumas pessoas, ao menos. Se não conseguir, irei aprender sobre elas. Mas não posso seguir minha carreira desta maneira. Temos um futuro brilhante em Cumberland's Hall.
  -- será um grande Conde. Ou melhor, já é.
  Ele sorriu, timidamente. Tinha me esquecido daquela timidez. Chegava a ser engraçado, alguém como ele ser tímido.
  -- por que me bajula assim?
  -- bajular? Quem aqui está bajulando?-- me irritei, incrédula.
  -- oh, minha querida... Eu me expressei mal.-- ele se desculpou -- quis dizer que sempre está me elogiando. Em qualquer assunto. Eu fico... Bem, eu fico sem jeito.
  -- Thomas, querido, olha pra mim... Você não tem ideia da pessoa que é.
  -- Amélia, querida... Você é como os primeiros raios de sol que surgem no horizonte, após uma noite chuvosa. Trazendo conforto e claridade para o mundo. Você, minha amada, não faz ideia do quanto é perfeita. Eu quero poder te contemplar como uma obra de arte, todos os dias de minha vida. Perto de você, eu sou apenas um espectador apaixonado...-- ele se declarou, abrindo seu coração verdadeiramente.
  Eu não soube o que dizer. Fiquei perplexa. Suspirei. Ele me olhava com olhos atentos e amorosos.
  -- eu te amei quando te conheci, anos atrás. Mas te amei muito mais quando te reencontrei. Você, meu amado, me fez redescobrir a vida. -- respondi, entrelaçando nossos dedos.
  -- mal posso esperar para anunciar ao mundo que estamos juntos.-- ele suspirou, colocando alguns fios de cabelo atrás da orelha -- mal posso esperar para me casar com você.
  Então meu rosto corou.
  Pela primeira vez, me dei conta de que iríamos nos casar em breve. Depois de tanto tempo, finalmente estaríamos juntos para sempre.
  -- farei um grande baile para anunciar nosso noivado. -- ele continuou, olhando ao redor, sonhador -- quero exibir você para todos. E logo depois, nos casaremos na Catedral de St Edmundsbury. Uma cerimônia digna de Cumberland's Hall... Da forma que você merece... Então, podemos viajar em lua de mel para o lugar que você quiser. Eu te levarei até para o outro lado do mundo, se assim desejar...
  Respirei fundo. Foi como se estivéssemos em sintonia, pois eu consegui imaginar exatamente o que ele dizia.
  -- mal posso esperar para me casar com você -- ele repetiu, ainda pensativo.
  -- serei a mulher mais feliz do mundo.
  -- eu te prometo que me esforçarei para que sempre seja... Eu a amo. Com todas as minhas forças.
  -- eu o amo. Com a minha vida.
  Ele se aproximou, depositando um beijo em meus lábios. Com carinho, com afeto. Juntos estávamos completos. Ali, ao lado dele, eu senti como se nada tivesse acontecido.

  A atmosfera era leve.
  O amor ingênuo e juvenil ainda estava ali. De repente, foi como se eu ainda tivesse dezessete anos. O que havia entre nós tinha resistido ao tempo e todas as adversidades.
  Ao invés de diminuir e desaparecer, simplesmente aumentou e permaneceu. Thomas e eu estávamos juntos novamente.
  E os sete anos que passei chorando por estar sem ele não foram suficientes para por fim ao nosso amor.
  Ele me olhava com ternura e nem mesmo sua falta de memória atrapalhava o que havia ali. Sua mente anevoada não impedia de sentir completa paixão por mim.
  Ficamos juntos na biblioteca até o anoitecer, quando fomos chamados para o jantar. Entre nós havia a tensão, mas também havia o respeito. Eu o tratava com veneração. Ele me tratava com adoração.

  Saímos da biblioteca com um sorriso enigmático nos lábios. Era doloroso sair sem estar enlaçada ao seu braço, caminhando ao seu lado como dois estranhos.
  Rapidamente fomos para a sala de jantar, onde Lady Clarisse estava me esperando. Meu lugar reservado, dessa vez junto ao seu, estava vazio esperando por mim.
  Sentei-me, um pouco tímida.
  -- Olá, Lady Clarisse -- cumprimentei, educada -- como foi o recital de poesia?
  -- oh, muito agradável, minha querida. Longo e temático, da maneira que eu gosto.-- ela respondeu com um sorriso, parecia mesmo estar satisfeita com tremenda chatice.
  -- fico feliz que tenha apreciado.
  -- oh, sim, claro. Apreciei sim. Mas não tanto quanto você -- ela rebateu, sarcástica. Lançou um olhar para Thomas, que conversava com nosso anfitrião tranquilamente.
  Eu não disse nada, apenas sorri.
  -- as madames sentiram sua falta. Você me deve uma. Precisei inventar uma história convincente para sua ausência.
  -- agradeço. Aprecio suas histórias de última hora.-- brinquei, levando a taça de água aos lábios.
  -- meu querido Albert dizia que eu sempre fui muito criativa.
  -- e é verdade, Lady Clarisse. Decidimos manter sua versão de nossa história -- comentei, num sussurro.
  Ela arregalou os olhos, surpresa.
  -- sua história?-- ela perguntou, para ter certeza do que estávamos falando.
  -- quando finalmente anunciarmos, vamos usar sua história. Thomas adorou as mudanças sutis que fez...
  Lady Clarisse sorriu, dessa vez um sorriso tímido que eu não imaginava que ela pudesse ter.
  -- oh, Amélia querida...
  -- finalmente vamos oficializar nosso amor, Lady Clarisse. Fico feliz que esteja ao nosso lado.
  -- oh, minha querida! Eu sempre estou do seu lado! E lhe asseguro que, na posição que ocupamos na sociedade, poucas pessoas Irão ousar ficar contra vocês. -- ela explicou, exalando satisfação, enquanto sussurrava-- olhe ao redor. Todos que aqui estão, são a nata da sociedade de Suffolk. Acredita que alguém daqui ousaria espalhar boatos maldosos a respeito do Conde e sua futura esposa? Pode ser que algumas pessoas critiquem a inferioridade de seu nascimento, a falta de nobreza em suas origens. Mas isto seria apenas inveja. Amélia, você vai se casar com o Conde desse lugar.
  Então eu suspirei. Finalmente tinha compreendido a posição que eu estaria e a influência que me seguiria. Thomas Cumberland era, nada mais nada menos, do que o Conde daquele lugar. Ele detinha o respeito máximo de Suffolk. Todos, por mais influentes que fossem, desejavam, ao menos a sua presença em um baile, para exibir os laços com o Conde.
  Realmente, ninguém ousaria espalhar fofocas maldosas a respeito dele.
  Olhei para Thomas, que bebericando vinho em sua taça, enquanto eu podia botar algumas damas admirando sua beleza.
  Bem, eu podia lidar com isso.
  Eu sabia que ele me pertencia, da mesma maneira que eu era toda sua.

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