Narcisos e segredos

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  Na manhã seguinte, logo que despertei, fui para meu quarto. Não demorou muito para que Maeve trouxesse meu desjejum. Ela abriu as cortinas e iniciou seu serviço, enquanto eu me alimentava tranquilamente.
  Era muito satisfatório comer na cama. Um protocolo para mulheres casadas.
  Após a refeição, um banho e eu logo estava pronta para o dia a seguir. Um dia muito bonito, por sinal. O sol tímido iluminava o jardim, e pela minha janela, podia admirar o verde da grama reluzindo.
  O mundo tinha se tornado mais belo.
  Depois do nosso casamento.

  Maeve sequer mencionou o fato de que minha cama estava impecavelmente posta, da maneira que ela tinha deixado no dia anterior.
  Desci as escadas, na esperança de ter algum visitante na mansão. Tinha adorado o tempo que passei como anfitriã, apresentando minha adorada Cumberland's Hall.
  Entretanto, meu caminho se cruzou com o de Lady Clarisse, apenas ela. Estava caminhando com passos irritados e o olhar furioso.
  -- minha tia -- cumprimentei, educada e cautelosa quanto a seu humor.
  -- oh, Amélia! Ver você me trouxe paz...-- ela segurou em minhas mãos, como se procurasse abrigo.
  -- o que houve, Lady Clarisse?
  -- estava com Francis, a governanta, e com Boyle, nosso querido mordomo... Uma reunião amarga sobre o destino de Andy. Bem, devo dizer, Andréa Clarke.
  -- doloroso, porém, merecido.
  -- sim, sim. Ela partiu logo cedo. Sem carta de recomendação, sem nada além de seu salário equivalente. Espero que tenha valido a pena, tudo que ela me fez.
  Em seus olhos, vi a dor. Ela estava sofrendo, apesar de toda situação traumática e seu mau humor, Lady Clarisse estava abatida pela partida de Andy.
  -- espero que não nos encontremos mais.
  -- eu também, Amélia. Andrea me traiu de todas as formas que uma mulher pode ser traída. E ainda assim, devo admitir que irei sentir falta dela.
  Eu acariciei seus dedos frios em silêncio. Ela pensou um instante e sorriu de canto.
  -- aquela desalmada sabia como pentear meus cabelos como ninguém!-- desabafou, segurando um riso.
  -- oh, isso sim.
  -- devo anunciar aos quatro ventos que estou a procura de uma nova camareira de Lady. Não irei receber ninguém enquanto não estiver perfeitamente adequada.
  Olhei bem para ela. Embora estivesse com um belo vestido e jóias, seus cabelos não estavam bem arrumados, como sempre foram. Certamente, Francis teria assumido essa função, na ausência de uma boa camareira.
  -- fui camareira de Lady por um tempo. Cuidava de duas belas moças. Donzelas da sociedade. Tenho experiência com cabelos, como ninguém nessa casa.
  -- eu jamais a constrangeria com algo assim, Amélia -- ela rejeitou a ideia.
  -- não seja boba, minha tia... Depois eu de todo apoio e tudo o que fez por mim, prender alguns grampos em seus cabelos não é nada.
  Lady Clarisse me encarou, pensativa. Ainda inclinada a rejeitar a ideia. Porém, viu seu reflexo um espelho do corredor, e não gostou nada do que viu.
  -- Francis teve boa intenção, porém ela não é boa camareira como é governanta.-- comentou desgostosa.
  -- deixe que eu dou um jeito nisso, Lady Clarisse.
  -- não estaria te ofendendo com algo assim?
  -- de maneira alguma.
  -- tudo bem. Mas prometa que não dirá a ninguém. Nem mesmo a Maeve. Ela pode espalhar entre a criadagem.
  -- prometo.
  Então, fomos para seus aposentos. Ela sentou-se diante da penteadeira, para que eu iniciasse o penteado. Tinha feito aquilo por muito tempo. Tirei os grampos, deixando os fios grisalhos soltos. Ela tinha um cabelo bonito e de comprimento mediano, fazia algumas ondas, mas era praticamente todo liso.
  Com cuidado, penteei e modelei novamente. Ela se encarava no reflexo do espelho, sem dizer uma só palavra.
  Não demorou muito. Apesar do tempo ter se passado, entre o último penteado que eu fiz e aquele momento, eu sabia muito bem o que estava fazendo.
  Quando terminei, sorri para ela, olhando no espelho. Ela suspirou, em silêncio. O que me preocupou.
  -- está tudo bem, minha tia?-- questionei, pousando as mãos em seus ombros.
  -- oh, Amélia...-- ela tocou minha mão, emotiva -- estou refletindo que, não me lembro da última vez em que alguém me tratou com tanta ternura...
  Eu sorri novamente, sentindo meus olhos arderem diante daquelas palavras.
  -- eu lhe sou muito grata, Amélia... Por tudo que tem feito por mim.
  -- é apenas uma retribuição, milady.
  -- ora ora... Sou feliz que esteja aqui. Estou feliz em ter te encontrado, lá em Cambridge. E estou ainda mais feliz por ser você, a nova Condessa Cumberland -- ela confessou, sem hesitar em nenhuma palavra.
  Eu me inclinei para enlaçar seus braços, encaixando meu rosto em sua clavícula.
  -- estou feliz que esteja comigo, Lady Clarisse Cumberland.
  Ela sorriu, ainda um tanto emotiva.
  Alisou meu rosto em seu ombro por alguns instantes. Fixou o olhar em seu reflexo, analisando o penteado que eu tinha acabado de fazer.
  -- a propósito, há muito tempo meus cabelos não ficavam tão belos como neste penteado. Obrigada, minha querida.
  Eu dei uma risadinha, me afastando. Ela não era dada a proximidade, como uma boa inglesa, o mínimo de toques era suficiente.

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