De volta para casa

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  Na nossa última noite a bordo, sabíamos que chegaríamos no dia seguinte ao porto. Ele estava, como de costume, olhando o mar tranquilo.
  Eu me aproximei em silêncio, respeitando seu momento de tranquilidade e meditação. Então, Thomas voltou-se para mim.
  -- o que irá acontecer se eu for um Conde rejeitado pela sociedade?-- ele me questionou, de repente.
  -- fique tranquilo, isso não irá acontecer -- confortei, num abraço carinhoso.
  -- talvez minha popularidade baixe. Visto que eu já não era tão querido assim -- ele continuou, num lamento.
  -- Thomas...
  -- por favor, Amélia, não diga que sou incrível e nada do tipo -- ele me interrompeu, amargurado -- ninguém esperava um Conde que chegou atrasado para assumir as responsabilidades, aleijado e sem os devidos protocolos... E muito menos um escândalo no dia do casamento.
  Fiquei em silêncio, sentindo sua verdadeira amargura.
  -- Lady Clarisse deve me achar um incompetente...
  -- não, pelo contrário. Ela tem orgulho de você.
  -- meu irmão era o herdeiro perfeito para este Condado. Ela conhecia ele. Ele tinha o carisma, sabia conviver no meio da nobreza e participar de todos os protocolos. Esse título era dele.
  -- por favor, pare com a autopiedade. Você é um Conde, que apesar da demora para assumir o título e as responsabilidades, conseguiu conquistar a sociedade e se tornou influente rapidamente. Além do mais, é uma pessoa boa e leal.
  -- você diz isso porque é casada comigo.
  -- sim, por isso minha opinião conta. Thomas, pense bem, seu tio-avo Albert Cumberland, era um Conde influente e carismático. Porém era um libertino dos infernos, não podia ver uma mulher passar por ele! Lady Clarisse sofreu traição em todas as oportunidades que Albert teve.
  Thomas ficou perplexo e em silêncio.
  -- apenas o fato de você ser uma pessoa apaixonada e leal, já te faz mil vezes mais estimado do que seu antecessor.
  -- aposto que não houve escândalo no casamento de Lady Clarisse e do Conde Albert Cumberland.
  -- e se tiver tido, as pessoas se esqueceram. Escândalo maior que uma grande variedade de amantes e, ainda assim, nenhum herdeiro, aposto que você não terá.
  Ele sorriu, concordando.
  -- nunca haverá uma amante sequer, minha querida... Assim como não houve antes do casamento, não haverá depois. Disso você pode ficar tranquila -- ele assegurou, beijando meu rosto.
  -- só isso já prova o quanto merece sua posição. O resto, a gente conquista. Talvez vamos precisar de alguns bailes e jantares, visitas na Galeria e nos jardins... Mas nós vamos superar tudo isso.
  Ele tornou a me beijar.
  -- esteja do meu lado, apenas isso que eu te peço. Eu quero merecer o lugar onde eu estou.
  -- sempre estarei. E você sempre vai merecer.
  Thomas voltou seu olhar para o horizonte.
  Ficamos em silêncio alguns instantes.
  -- ela foi traída tantas vezes assim?-- ele questionou, de repente.
  -- em todas as oportunidades que ele teve.
  Ele ergueu as sobrancelhas, perplexo.
  -- ela sofreu tanto a partida dele, ainda lamenta ser viúva... Imaginei que os dois tinham uma vida de infinita felicidade -- ele confessou, inacreditado.
  -- pois é. Quando eu a conheci, Lady Clarisse não tinha forças para sair de seus aposentos. Sofreu muito com a morte do Conde Albert. Aos poucos ela me confidenciou, ela sabia de todas as suas traições. Inclusive com sua criada pessoal.-- contei a ele, baixando o tom de voz, mesmo sabendo que estávamos a sós.
  Thomas ouviu atentamente, seguindo perplexo a cada nova frase.
  -- você diz... Aquela mulher amarga que anda ao lado dela...-- ele comentou, tentando se lembrar o nome.
  -- Andrea, mais conhecida como Andy.
  Ele abriu a boca em silêncio e logo a fechou, surpreso.
  -- minha tia sabia de tudo? E ainda mantém Andy no cargo de camareira pessoal?
  -- sim. Segundo ela, o finado marido prometeu a ela que, poderia ter diversas amantes, porém a única Condessa de Suffolk seria ela. Ele sempre voltaria para ela.
  Thomas ficou indignado. E eu compartilhei sua indignação.
  -- céus... Cada vez fica pior! Pobre tia Clarisse!
  -- e para ela, isso bastava. Ela o amava demais, sentia uma verdadeira adoração por ele... Viveu uma vida longa ao lado dele.
  -- nunca mais a verei com os mesmos olhos.
  -- pois então... Por isso eu tenho certa compaixão por ela. Viveu quarenta anos com ele, nunca teve filhos... Dedicou a vida ao Condado e a sociedade.
  -- provavelmente ele não podia ter filhos... Nunca ouvi nada sobre algum bastardo.
  Eu concordei com a cabeça. Essa era uma palavra estranha de se ouvir, no meio em que frequentava.
  -- meu primo segundo seria o herdeiro legítimo do tio Albert. Quando ele percebeu que não havia ninguém para herdar o título e as propriedades, ele saiu a procura do próximo na sucessão.-- Thomas narrou a história dos Cumberlands -- Convidou esse meu primo e meu irmão mais velho para que conhecesse Cumberland's Hall. Eu era pequeno, mas me lembro de conhecê-lo. Parecia um homem bom.
  -- Lady Clarisse me contou que ele era carismático e lidava bem com pessoas. Todos gostavam dele. Inclusive as mulheres.
  Thomas chacoalhou a cabeça.
  -- ele tinha uma fama, suponho. Meu pai abdicou da sua sucessão, imagino que seja por isso. Ele simplesmente não quis estar próximo ao tio Albert. Então, esse meu primo segundo era o próximo. E meu irmão depois. Ambos perderam suas vidas na França. E eu imagino que tio Albert nem sabia disso.
  -- eu realmente me perguntei o porquê de seu pai não ser o próximo na linha sucessória.
  Ele pensou um pouco, ainda dolorido. Mas não se opos a continuar a conversa.
  -- ele tinha os próprios negócios para tomar conta. Bem, essa foi sua explicação quando foi questionado. Na verdade, meu pai não tinha interesse algum em ser Conde e abdicou seu lugar. O primo mais velho era o próximo na linha e foi treinado a vida toda para ser o herdeiro, conviveu com o velho Conde. Meu irmão estava sempre ao redor, como uma segurança extra de herdeiro.
  -- espero que as coisas entre vocês fiquem bem de novo -- comentei de forma delicada.
  -- eu duvido muito. Nós dois dissemos coisas horríveis um ao outro. E o dano causado por ele extrapola o meu limite do perdoável -- Thomas lamentou, pensativo, mas decidido.
  -- eu sinto muito. Sei que fui a causa de tamanha discórdia.
  -- você? Oh, não... A causa sou eu. Meu pai se nega a acreditar que eu sou capaz de assumir o título e suas responsabilidades... Ele tem certeza de que eu ainda estou fragilizado pelas sequelas de batalha -- Thomas rebateu e eu senti a raiva surgindo em seu olhar.
  -- isso é ridículo...
  -- eu sei. Porém, tem momentos que eu me pego pensando que ele pode ter razão.
  -- te garanto que estarei aqui para apoiar você nesses momentos.
  Ele se inclinou e me beijou com carinho. Não foi preciso dizer nada. Estávamos juntos e isso era mais do que o suficiente.
  Não sabíamos o que estava nos aguardando em terra firme. Quando finalmente atravessar os portões de Cumberland's Hall, haveria algo nos esperando.
  Não sabia se era bom ou ruim.
  Seja lá o que fosse, enfrentariamos juntos.

  Na manhã seguinte, o navio atracou no porto. A agitação pelo desembarque agitava os passageiros e a tripulação. Thomas segurava em minha mão, enquanto desciamos para a área desembarque.
  Ted e Maeve estavam responsáveis pelas bagagens. E eu podia ver a carruagem ostentando no brasão dos Cumberlands, que nos aguardava nas docas.
  -- Lady Clarisse deve estar ansiosa pelo nosso retorno -- comentei, excitada com a chegada.
  -- mal posso imaginar. Ela deve estar no Hall, caminhando de um lado para o outro -- Thomas brincou, ilustrando.
  -- certamente há uma mesa posta com a mais fina porcelana para um bom chá -- completei, imaginando a cena.
  -- certamente -- ele concordou, sorrindo.
  Uma breve caminhada e estávamos na carruagem. Um suspiro do ar frio e úmido, que eu tinha sentido tanta falta. Estávamos quase chegando em casa e um frio na barriga me ameaçou com uma nova crise de ansiedade.
  Thomas estava contido, olhando pela janela em silêncio. Eu sabia o que ele estava sentindo, podia ver a aura de preocupação ao seu redor.
  Não podia julga-lo.
  Alguns longos minutos em silêncio, sacolejando na carruagem, avistei os portões de Cumberland's Hall. De volta ao lar.
  Ele olhou para aos portões e para mim, entrelaçou nossos dedos em silêncio, com um sorriso forçado. Logo soltou. Sabia que Lady Clarisse não era adepta das demonstrações de afeto.
  Mesmo que detestassemos todos esses protocolos ridículos, precisávamos cumpri-los, ao mesmo na presença dela.
  O Conde e a Condessa de Suffolk tinham um bom exemplo de respeito e ordem a oferecer.
  Quando a carruagem parou em frente a escadaria, pude ver toda a criadagem que estava a nossa espera, assim como a reluzente Lady Clarisse.
  Os cavalariços abriram a porta e fui auxiliada a descer. Meu vestido esverdeado era mais luxuoso e pesado que os demais, tinha sido escolhido por Maeve para que meu retorno ao lar fosse especial.
  Thomas segurou minha mão e subimos os muitos degraus. Lady Clarisse nos aguardava com um sorriso de saudades. Tinha sentido sua falta, assim como de todos ali.
  -- oh, céus! Deus é testemunha de que senti a falta de vocês dois, mais do que o imaginado!-- ela exclamou, vindo nos cumprimentar.
  -- também sentimos sua falta, minha tia -- Thomas respondeu, com um beijo em sua face.
  -- você não imagina o quanto -- completei, quando foi minha vez de beija-la.
  Foi estranho, admito. Uma demonstração de afeto daquela magnitude. Lady Clarisse era um cubo de gelo de emoções!
  Fomos conduzidos pelo Hall de entrada, após cumprimentar nossos amados criados e lacaios, e também o maravilhoso mordomo. Cumberland's Hall estava na mais completa ordem e explendor.
  -- sei que devem estar cansados da longa viagem -- Lady Clarisse comentava, ansiosa -- mas preparei um chá para nós... Oh, por favor, venham comigo.
  -- seria uma honra, minha tia -- Thomas respondeu, me entre olhando com um sorriso.
  -- sentimos falta de tomar chá contigo -- completei, seguindo-a de perto até o Solário.
  -- oh, nem me diga... Prometo a vocês que tomei chá apenas duas vezes, com convidados... Não é a mesma coisa sem você, Amélia querida.
  Eu sorri. Me sentia radiante por ser tão especial na vida dela. Apesar de seus defeitos e preconceitos, Lady Clarisse era uma boa pessoa. E eu, estranhamente, gostava muito dela.
  O Solário estava decorado com flores, a mesa posta com finas xícaras e pires, certamente eram chinesas. Bolos e biscoitos. Tudo de melhor.
  -- admirável, minha tia -- Thomas elogiou, se sentando -- é uma imensa satisfação ser recebido ao lar assim...
  -- oh, meu querido... Isso é o mínimo que eu poderia fazer... -- ela sorriu, levando sua xícara aos Lábios.
  Nós três tomamos chá como costumávamos fazer. Bem vestidos, elegantes, seguindo as etiquetas. Nós três. Uma família estranha, mas funcional e amorosa, a nossa forma.
  Lady Clarisse, que outrora temia em viver sozinha, visto que tinha perdido o marido e não tinha nenhum filho, tinha encontrado em nós dois uma razão para seguir sua vida.
  Thomas, após passar por uma amnésia e viver uma vida amargurada, jurava nunca mais amar ninguém. Estava tomando chá com sua tia-avó, improvável figura materna, e sua esposa, que tinha encontrado apesar de toda perda de memória.
  E eu, que vivi logos anos em um luto não definido e um pânico de viver entre pessoas, estava casada com o amor da minha vida, ostentando o título de Condessa de Suffolk.
  Éramos a mais prova de que tudo pode ser superado com paciência e afeto.
  Nada foi mais saboroso que aquele chá e aqueles biscoitos. Alguns assuntos aleatórios e vários sorrisos de alegria genuína. Estávamos de volta em nossa casa

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