Na calada da madrugada

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  Naquele mesmo dia, escrevi a Mary.   Tinha muitas coisas para contar a ela, porém me ative a ser breve. A principal função daquela carta era pedir o endereço de correspondência com William Bennet.
  Enviei aquela carta antes do entardecer.
  Esperava receber sua resposta o mais breve possível. Quis me dedicar a isso para evitar pensar no que estava acontecendo.
  Mas era inevitável.
  Thomas esperava uma resposta minha, ele era paciente, todavia eu precisava tomar minha decisão.

  Eu podia aceitar os sete anos que se passaram e tudo que mudamos neste período, podia aceitar a diferença de classe entre nós e suas consequências, porém não podia superar meus traumas.
  Aquele incidente tinha deixado feridas que eu não conseguia cicatrizar. Não podia seguir em frente, pois estava constantemente sendo levada novamente aquela noite fatídica.
  E Thomas não tinha culpa alguma nisso.
  Ele não fazia ideia de nada.
  Por mais que eu tinha explicado minha dificuldade e sofrimento com boatos em público, ele não conhecia a causa daquilo tudo.
  Entretanto, eu não era capaz de contar a ninguém sobre aquilo.

  Respirei fundo. O sol tinha se posto mais cedo, o frio tomava conta da mansão e já estava quase na hora do jantar.
  Eu não seria considerada covarde se não comparecesse aquela mesa, junto com Thomas e Lady Clarisse. Mas quis provar algo para mim mesma e fui.
  Desci as escadas, respirando fundo para evitar a onda de ansiedade. Tinha em mente que tudo daria certo e mentalizei isso até me sentar a mesa.

  Lady Clarisse me encarou, com olhar culpado. Thomas ainda não tinha chegado. A mesa estava posta com elegância, e nós esperávamos por ele.
  -- boa noite, Amélia -- Lady Clarisse cumprimentou, com gentileza.
  -- boa noite, mi lady.-- eu respondi, me esforçando para olhar em seus olhos.
  -- eu sinto muito -- ela lamentou, baixando os olhos de forma culpada -- eu não tinha a intenção de magoa-la.
  Eu não respondi, continuei olhando em seus olhos, onde ela podia ver minha completa mágoa.
  -- lamento o que houve entre nós -- ela continuou, piscando seus olhos -- peço que me perdoe.
  -- saiba que aquilo me chateou. profundamente.
  -- eu sinto muito.
  -- esses boatos tem feito a minha existência miserável, Lady Clarisse. Espero que tenha entendido.
  -- oh, querida... Eu sinto muito mesmo -- ela reforçou, estendendo uma mão ao encontro da minha -- peço que me perdoe...
  -- e eu lhe peço que pare, de uma vez por todas, de insistir nesse assunto -- ordenei, bem em tom de ordem mesmo, para que ela compreendesse, enfim, como eu estava chateada com aquilo.
  -- eu te juro: de minha boca jamais sairá outra palavra sobre esse assunto -- ela prometeu, me olhando fixamente.

  Eu concordei com a cabeça e um silêncio tomou conta da sala de jantar. Não havia mais nada a ser dito, nada mais a ser esclarecido.
  A lareira tinha sido acesa e um calor aconchegante dominava o lugar, afastando o frio que estava no ar. Ficamos alguns minutos em silêncio, esperando por Thomas.
  Ele frequentemente se atrasava para as refeições, porém era o protocolo que deveríamos aguarda-lo. Ele era o Conde e Senhor daquela mansão.
  Lady Clarisse mantinha sua postura, enquanto aguardavamos. Se Thomas não viesse jantar, era seu dever, enviar um recado nos permitindo iniciar a refeição sem ele.
  Ficamos ali esperando.

  Ouvi passos pelos corredores e imaginei que fosse um criado trazendo tal recado, visto que tinham se passado alguns minutos. Porém, era Thomas.
  Ele usava um casaco e cachecol, andou de forma elegante até a mesa, atraindo nossa atenção. Precisei de um esforço para manter minha boca fechada.
  -- boa noite. Peço que me perdoem o atraso -- ele saudou, educadamente.-- Agradeço pela paciência.
  Nós duas concordamos com uma reverência e ele se sentou, sinalizando que fossemos servidos.
  Polly e Francis estavam na sala de jantar, coordenando tudo por ali, na mais perfeita ordem. Encheram nossas taças e logo pude apreciar o melhor vinho que já tinha provado na vida.
  Não pude evitar um suspiro, o que atraiu os olhos atentos de Thomas.
  -- apreciou o bom vinho?-- ele comentou, segurando sua taça com elegância.
  -- sublime...-- suspirei, apreciando seu aroma característico.
  -- um presente do Juíz Marc Devon. Veio direto de Portugal, da região de Alentejo. O melhor vinho que já experimentei -- ele informou, me imitando e logo agitou a taça com movimentos suaves.
  -- Vossa graça está bem próximo do Juíz Marc Devon. Isso é bom, milorde.-- comentou Lady Clarisse, dando um gole em sua taça.
  -- sim. Ele é um grande homem.
  -- ele tem uma filha, Vossa graça, não sei se foram apresentados -- ela continuou, atrevida -- a bela Elisabeth. Uma doce moça gentil.
  -- fomos apresentados sim, Clarisse -- ele respondeu, erguendo a sobrancelha como se a repreendesse com o olhar.
  Aquela pontada de ciúmes surgiu novamente.
  -- Elisabeth está a procura de um bom marido. Acredito que o Juiz esteja se aproximando com segundas intenções -- Lady Clarisse acrescentou, com seu olhar esperto.
  -- oh, poderia ser, sim. -- ele se limitou a responder, voltando sua atenção para seu prato.
  Eu baixei a cabeça, pois senti o rubor subir ao meu rosto e não queria que ninguém visse. Estava enciumada. De novo.

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