Nascimento

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  Ao entardecer, sai para caminhar com Lady Clarisse pelos jardins. Ela adorava assistir o por do sol ao redor do lago. Aqueles narcisos deu o toque especial ao ambiente.
  Estávamos quase chegando, não era uma caminhada longa, mas o peso da barriga estava me incomodando, e eu andava cada vez mais lentamente.
  Então senti uma pontada na baixo ventre que me fez paralisar. Lady Clarisse se virou imediatamente, com preocupação no olhar.
  -- Amélia, está tudo bem?
  A dor persistiu por alguns segundos. Minha barriga se contraiu toda e eu senti medo, como nunca tinha sentido antes.
  -- eu acho que o bebê vai nascer...-- murmurei, virando os calcanhares para voltar pra casa.
  -- como assim? Ainda falta algumas semanas!
  -- eu sei, mas senti uma dor aqui. Uma dor diferente de tudo que já senti.
  Lady Clarisse veio até mim e me amparou pelo caminho de volta. Caminho que foi bem mais longo, enquanto eu sentia dor.
  Quando estávamos mais próximas de casa, alguns criados perceberam que havia algo errado e vieram ao nosso encontro. Fui carregada para dentro da mansão, enquanto Lady Clarisse pedia que buscassem o médico o mais rápido possível.
  Quando me deitaram na cama, eu estava completamente aterrorizada de medo.

  Maeve veio até mim com um copo de água, pedindo que eu me acalmasse. Ela tirou meus vestidos pesados e me vestiu com uma camisola leve de algodão.
  -- ainda falta quase um mês, Maeve -- me preocupei, quando outra dor alucinante me atingiu.
  -- eu sei, milady. Pode ser um alarme falso. Lady Clarisse já mandou buscar o médico. E Vossa Graça também.
  -- oh, Deus... Não quero perder meu bebê, Maeve -- choraminguei.
  -- milady, isso não vai acontecer. Não diga uma coisa dessas!-- ela me repreendeu, ansiosa -- pode ser apenas um parto prematuro. Um bebê apressado demais...
  -- ainda assim, estou com medo.
  -- eu estarei aqui com você.
  Maeve segurou a minha mão com firmeza.
  Me sentei na cama, um pouco trêmula. Acariciei a barriga arredondada, tinha me acostumado com aquela barriga grande e bonita. Tinha certeza de que passaria mais um mês com ela.
  Não estava preparada para um parto prematuro.
  Maeve me trouxe uma tigela com uvas.
  -- coma, milady. Trabalhos de parto duram horas, você precisa comer algo leve para não desfalecer.
  -- tem experiência com partos, Maeve?
  -- minha mãe teve dez filhos depois de mim. Os três últimos eu acompanhei os partos. Sei bem o processo -- ela sorriu, prendendo meus cabelos numa trança.
  Suspirei. O suor começava a formar gotas na minha testa. Minha barriga estava contraindo, de forma que eu perdia o ar.
  Me esforcei para engolir algumas uvas, precisava estar forte para o meu bebê. Não podia desfalecer de maneira nenhuma.

  Não demorou muito e Thomas entrou no quarto, os cabelos desgrenhados e expressão de preocupação. Veio até mim imediatamente, segurando minhas mãos.
  -- oh, por Deus, minha querida! Como você está?
  -- estou bem. Mas com dor. Eu estou com medo, meu amor -- minha voz saiu embargada, e eu procurei seu abraço.
  -- vai ficar tudo bem. Eu vim a cavalo, o mais rápido que pude. Mas fui informado que foram buscar o médico.-- ele me assegurou, com carinho.
  -- estou com medo -- repeti.
  Thomas se levantou, me apoiando a levantar também.  Ele parecia tão alto perto de mim, apenas encostei a cabeça no seu peito, respirando devagar.
  Eu realmente estava com medo. Mas precisava ser corajosa.
  Fiquei abraçada a ele por um tempinho, até que Lady Clarisse entrou no quarto, acompanhada do doutor Miller.
  -- ali está ela, doutor! Ainda é muito cedo para o bebê nascer -- ela apontou, ansiosa e ofegante.
  Certamente subiu as escadas as pressas, arrastando o pobre médico consigo.
  O médico me olhou.
  -- vossa graça -- fez uma reverência educada -- gostaria de pedir licença para que possa examinar vossa graça, a Condessa.
  Lady Clarisse arrastou Thomas pelo braço. E eu vi no olhar do meu marido que ele não queria me deixar.
  Maeve se posicionou ao lado da minha cabeceira.
  -- sua criada por ficar, vossa graça -- ele permitiu, antes que eu pedisse -- por favor deite-se, milady.
  Eu obedeci, com certas dificuldade.
  O médico colocou seu estetoscópio no meu peito, depois desceu para a barriga. Auscultou por alguns instantes. Depois, pousou a mão e aguardou uma contração completa. Quando a barriga parou de contrair, ele se afastou.
  -- bem, milady. Realmente é uma contração de trabalho de parto ativo. Ao que parece, vossa graça irá ter o bebê mais cedo do que o esperado. -- ele anunciou, pegando uma luva na sua bolsa.
  -- e isso é muito arriscado?
  -- oh, não é muito comum. Mas acontece algumas gravidezes, milady. Vou acompanhar de perto para lhe prestar o atendimento devido.
  -- existe algum risco de eu perder o bebê?
  -- bem, milady, em todo trabalho de parto prematuro há um certo risco. Mas eu estarei aqui para qualquer intervenção.-- ele explicou, com voz tranquilizadora -- preciso realizar mais um exame para identificar a progressão do parto.
  Eu busquei o olhar de Maeve, que tentava ser o mais tranquilizador possível. Ela deu um leve aceno com a cabeça.
  -- tudo bem, doutor.
  O médico afastou meus joelhos e fez um toque. Dolorido e desconfortável, mas rápido. Ele se afastou rapidamente e tirou suas luvas.
  -- lamento por isso, é um exame incômodo, mas necessário, milady.-- ele se desculpou -- mas é por ele que eu identifico a progressão do parto.
  -- e como está?
  -- bem, ainda está no início, milady. Mas é um trabalho de parto ativo. Vou ficar aqui até que esteja na hora.
  Eu concordei com a cabeça e tentei ficar confortável na cama. O médico abriu a porta para que Thomas e Lady Clarisse entrassem.
  Meu marido veio imediatamente ao meu lado.
  -- vossa graça, se trata de um trabalho de parto prematuro. Está um pouco adiantado, mas eu ficarei aqui caso necessite de uma intervenção.-- ele explicou a Thomas, com a voz mais tranquila possível.
  -- obrigado, doutor Miller. Minha tia, a governanta e o mordomo vão fazer tudo o que for necessário. Fale com eles.-- Thomas respondeu, segurando minha mão.
  O médico saiu, acompanhado de Lady Clarisse.
  Maeve me trouxe outro copo de água e mais uvas.
  -- oh, Maeve, obrigada. Mas acredito que basta de uvas por agora -- respondi, tentando ser o mais agradável possível, visto que eu estava com muita dor e ela não tinha culpa alguma.
  Minha fiel companheira concordou com a cabeça e saiu, deixando eu e meu adorado marido a sós.
  -- por favor, não me deixe -- pedi, num sussurro.
  -- jamais, minha querida.
  Ali ficamos, lado a lado. A cada nova dor, Thomas me amparava, fazia o possível para me apoiar.
  Logo as criadas surgiram com panos e água morna. O sol foi sumindo no horizonte e minha agonia só aumentava.
O querido médico estava sempre por perto, garantindo que estava correndo tudo bem. Maeve não se afastava também, sempre trazendo água fria e algumas frutas.
  Até que a dor se tornou insuportável e não havia posição alguma em que eu pudesse ficar confortável. Thomas se afastou ao ver o meu estado de loucura, estava cega de dor.
  Caminhei pelo quarto, agachei, me deitei. E nada aplacava minha dor. Enquanto eu me segurava para não gritar, senti água quente descendo por minhas pernas. O médico veio imediatamente.
  -- vossa graça, a bolsa das águas se rompeu. Está mais perto a chegada do bebê.
  Eu nem sequer respondi. Maeve trouxe uma camisola limpa. E quando tirei a roupa molhada, olhei para minha barriga, dura, contraída, mais baixa do que de costume.
  Meu bebê estava quase nascendo.
  Ela me vestiu rapidamente. E as criadas secaram o chão, tudo rápido e em silêncio. A noite tinha caído e eu estava cansada. Podia ver a lua cheia brilhando no céu.
  -- bem que me avisou que duraria horas -- comentei, apoiando em Maeve para me deitar novamente.
  -- já está quase acabando, milady. Seja forte.
  Ela dobrou lençóis e colocou embaixo de mim, com cuidado.
  Thomas estava na poltrona, bem ao lado da cama, sem dizer nenhuma palavra. Talvez estava aterrorizado. Aposto que ele nunca imaginou como era um trabalho de parto.
  -- como você está?-- ele perguntou, enfim.
  -- com dor.
  Ele forçou um sorriso. Beijou minha testa com carinho.
  -- está acabando já, eu espero -- falei, num momento que tive livre de dores.
  -- vai ficar tudo bem.
  Me ajeitei entre os travesseiros, procurando uma posição confortável. E ali fiquei, sentindo dores cada vez mais fortes. Pensei que fosse morrer.
  O médico voltou para avaliar o progresso. Fez o toque, e quando tirou seus dedos vi que estavam cheios de sangue. Ele limpou rapidamente, mas eu sei bem o que vi.
  E Thomas também.
  -- está tudo bem, doutor?-- ele questionou, se levantando.
  O médico sinalizou que se afastassem.
  Deitada na minha cama, eu pude ver que eles cochichavam, para que eu não ouvisse o que diziam. Doutor Miller parecia preocupado e Thomas mal podia me olhar.
  Eles voltaram para perto de mim.
  -- bem, Vossa Graça, está entrando no expulsivo, então logo deve nascer. A cada nova dor, faça força para o bebê nascer. Ficarei aqui no quarto.-- o médico explicou, sem transparecer qualquer sentimento.
  -- está tudo bem com o bebê? Vi sangue na sua mão -- perguntei, com medo da resposta.
  -- está em trabalho de parto faz algumas horas, milady, é normal que perca sangue. Todavia, estarei te acompanhando.
  Thomas segurou minha mão com força.
  Ele estava com tanto medo quanto eu.
  Lady Clarisse vinha até a porta e saía. Não tinha coragem de entrar ali. Afinal, os protocolos proibiam os acompanhantes durante o trabalho de parto. Na verdade, Thomas também não deveria estar comigo. Mas ele não ligava para os protocolos. E ninguém seria louco de pedir para que ele saísse.
  A cada nova dor, eu fazia força, como o doutor tinha me instruído. Queria que aquilo acabasse logo, estava cansada e com fome. De repente, as uvas não me sustentavam e eu queria comer algo sólido.
  Porém, precisava expulsar aquele bebê de mim o mais rápido possível.
  As criadas apareceram para trocar os lençóis que estavam sob mim. Estavam completamente encharcados de sangue.
  Thomas se levantou e puxou o médico para o canto do quarto, desesperado.
  Começaram a conversar em voz baixa, mas logo se alteraram.
  -- eu avisei Vossa Graça que precisaria tomar essa decisão.
  -- decisão uma ova! Quero minha esposa viva! E meu bebê também!-- Thomas bradou, de forma intimidadora.
  -- vossa graça...
  -- o senhor viu aqueles lençóis! Ela está perdendo muito sangue! Faça alguma coisa!
  -- a primeira coisa a se fazer, é não deixar ela apavorada, vossa graça.-- o medico o repreendeu, e voltaram a cochichar.
  Encostei minha cabeça nos travesseiros. Meu coração batia desesperado dentro de mim e senti medo como nunca tinha sentido antes.
  Maeve enxugou minha testa com um pano úmido. Ela também parecia preocupada.
  -- eu vou morrer, Maeve?-- perguntei, com voz trêmula.
  -- oh, milady... Não diga isso!
  -- o médico quer que Thomas escolha entre eu ou o bebê, não é mesmo?
  Maeve não respondeu, mas seu olhar disse tudo. Ela deu atenção ao meu cabelo, onde a trança já estava quase toda desfeita e os fios grudaram no suor de minha testa. Maeve refez o penteado com cuidado.
  -- quero água, Maeve -- pedi, com vontade de chorar.
  Ela saiu imediatamente.
  O médico voltou para a cama, onde ficou assistindo a nova contração que senti. Thomas segurou minha mão com carinho, em silêncio. Senti medo, mas não podia ignorar o fato que ele tinha que decidir entre eu e o bebê. Era uma escolha difícil.

  Passaram alguns minutos e o médico fez um novo toque. Limpou as mãos antes que eu visse e falou:
  -- milady, o bebê está chegando. Preciso que faça força. Já senti a cabecinha dele.
  Aquilo me deu uma injeção de ânimo. E quando a contração veio, fiz força até que meus dentes doeram.
  O médico nada disse.
  A dor veio novamente e eu repeti a força.
  Nada novamente.
  -- tem alguma coisa errada, doutor -- comentei, exausta.
  -- parece que o bebê não está te ajudando, milady. Vai precisar mais do que isso para ele nascer.
  Ouvi suas palavras. Para o bebê não estar me ajudando a provavelmente tinha algo errado com ele. Busquei os olhos de Thomas, que estava completamente desesperado.
  Reuni toda força do meu ser quando a nova contração chegou. Uma dor insuportável. E senti que estava nascendo.
  O médico o segurou e logo me entregou. O bebê estava quente e levemente roxo. Eu o abracei instintivamente.
  Mas não houve choro.
  O médico, então, o pegou dos meus braços.
  -- meu Deus, o que tem de errado com meu bebê?-- gritei, tentando me levantar.
  Thomas me abraçou, me segurando.
  O médico massageou o pequeno bebê, mais pequeno do que qualquer bebê que eu tinha visto na minha vida.
  E então, ouvi o melhor som que eu poderia ouvir.
  Ele chorou.
  Na verdade, berrou.
  O médico me devolveu o bebê e eu o abracei com cuidado. As criadas vieram com lençóis de algodão para acolher o bebê.
  Thomas beijou minha cabeça.
  -- é um belo menino, vossa graça. Parabéns -- o médico anunciou, limpando as mãos.
  -- é um guerreiro -- Thomas sussurrou, puxando o lençol para ver melhor o pequeno menino em meus braços.
  Eu não tinha palavras.
  Meu coração estava acelerado e mal podia respirar. Minhas mãos tremiam.
  O médico pediu que as criadas trocassem os lençóis novamente. E continuou olhando para mim.
  -- vossa graça...-- ele começou -- entregue o menino a uma das criadas, para que elas o agasalhem.
  -- mas por quê? Ele está bem aqui nos meus braços.
  -- algo errado, doutor?-- Thomas se levantou, preocupado.
  -- bem, vossa graça. Parece que descobri o motivo do parto prematuro.
  -- qual o problema, doutor?-- a voz de Thomas se alterou.
  -- tem mais um bebê. São gêmeos.
  Meus braços se enfraqueceram.
  Maeve veio pegar o pequeno menino dos meus braços, com carinho e cuidado.
  -- vai ficar tudo bem, milady.
  Eu sorri para ela, enquanto levava meu bebê.
  Logo outra contração veio e minhas forças estavam se esgotando. Thomas segurou minha mão com mais força.
  Não desisti. Fiz exatamente como da outra vez. Tirando força da minha alma para que o outro bebê nascesse.
  E senti que nascia.
  O médico sorriu ao colocar o outro bebê, quente e pequeno, sobre meu peito. Esse veio chorando a plenos pulmões.
  Eu não tinha palavras. Confortei com cuidado, em silêncio. Enquanto Thomas regozijava ao meu lado.
  Doutor Miller sorriu para mim.
  -- são pequenos, por conta do parto antecipado, mas são dois meninos fortes, vossa graça. Meus parabéns. O futuro de Cumberland's Hall está mais do que garantido.
  Olhei para Thomas, que me beijou com carinho.
  -- não temos nomes para eles -- comentei, sorrindo.
  -- eu escolho um e você escolhe outro.
  Eu o beijei novamente.
 

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