O tal Conde Cumberland

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Dias atuais

A Condessa mandou espalhar a notícia pelo condado e nas cidades vizinhas que Cumberland's Hall estava aberta para visitação novamente e o efeito foi quase automático. Dois dias depois, havia carruagens chegando de todo canto.
Parte da nobreza estava ali, ansiosa para ver como Clarisse estava, depois de meses de reclusão. Além de estarem atrás de notícias sobre o sucessor do Conde. Mas nada disso importava, ela sabia lidar com o público e guiava suas amigas em longos passeios pelos jardins e tomavam chá, enquanto conversavam sobre seus assuntos.

A vida para os criados ficou mais agitada. Tínhamos trabalho o tempo todo e praticamente todo dia, tinha um banquete a se oferecer. Eles até tinham se esquecido de como é a rotina em uma mansão daquele porte.
Aquilo tudo era um desafio para mim, mas eu ficava grata, pois tinha ao que me apegar para evitar a tristeza em minha alma.
Eu acordava feliz ao saber que tinham hóspedes e eu precisava planejar um banquete. Junto com os cozinheiros, preparavamos um cardápio e eu precisava comprar os ingredientes. Eu adorava passar a manhã no mercado, entre as pessoas, sempre ocupada.

Ninguém me conhecia ali, eu era apenas mais uma governanta. E encontrava governantas de todas as grandes casas dali, podia conhecer todas e ninguém sabia da minha vida, mais do que eu contava. Ninguém sabia de onde eu tinha vindo e das tristezas que me afligiram.
Eu estava entre as pessoas, agindo de uma forma que ocultava todo meu passado. Tinha amizade com outras governantas e criadas, passava meu tempo livre conversando com todos, mas ninguém imaginava o que eu tinha vivido.
Alguns criados audaciosos chegavam a demostrar interesse em mim, assim como cavalariços. Mas não havia ninguém bom o suficiente para me atrair. Nem sequer me tentavam.

Eu estava completamente indisponível para qualquer homem que se aproximasse de mim com segundas intenções.
A minha vida era outra e a maior parte do meu tempo era dedicada a maravilhosa Cumberland's Hall e a Condessa.

Mais duas semanas se passaram, semanas longas e cheias de hóspedes e jantares. Conheci e recebi tanta gente que minha cabeça doía.
Nem mesmo em Cambridge eu tinha conhecido tantas pessoas poderosas. Eram tantas exigências e etiquetas que era praticamente impossível sair sã daquilo.
Eram muitas pessoas que apareciam para conhecer os jardins de Cumberland's Hall e toda sua majestade.
Quando, enfim, a última carruagem partiu, eu respirei fundo, aliviada. Não aguentava mais aquele teatro, foi exaustivo.
Era noite, meu corpo todo estava cansado de todo trabalho daquele dia. Passei nos corredores, verificando se todas as janelas estavam trancadas. Uma chuva torrencial caía lá fora e a minha preocupação era ter alguma janela aberta ainda.
A maioria dos criados tinha se recolhido, ficando apenas alguns do turno da noite. Cumprimentei a todos e quando estava indo me recolher, Boyle me chamou. Ele estava sonolento, mas veio até mim.
-- Amélia, eu vi pela janela que tem um cavalheiro, provavelmente é um mensageiro, a caminho. Você se importa de receber a mensagem para mim?
Na verdade, eu me importava sim. Mas ele já estava vestido para dormir e não me custava nada receber a mensagem. Concordei com ele e voltei para o hall de entrada.
Logo bateram a porta e eu abri.
Era um homem alto, com barba no seu rosto, cabelos escuros, que estavam molhados e grudados em seu pescoço, e cicatrizes cobriam sua bochecha direita. Eu me assustei com sua presença. Ele usava um casaco vermelho do exército, e pelo jeito, era de alta patente, estava completamente ensopado da chuva. Ele me olhou de cima a baixo e falou, um pouco ríspido:
-- ao que parece, eu estou em Cumberland's Hall, certo?
-- sim, senhor. No que posso ajudar?-- eu respondi, um pouco amedrontada com sua aparência.
-- então é essa a tão famosa recepção de Cumberland's Hall? Francamente.-- ele bufou, visivelmente irritado.
-- peço desculpas, mi lorde. Já é tarde e o mordomo já se recolheu. Quem és, para que posso anuncia-lo?-- eu me defendi, sendo educada.
-- eu sou o novo conde.
Eu fiquei boquiaberta e, mais do que depressa, fiz uma reverência a ele, que ainda estava irritado.
-- oh, vossa graça!-- exclamei, ainda em reverência -- sinto muito pelo mal entendido. Não imaginava que...
-- que o senhor da propriedade chegaria a uma hora dessas? Pois é. O mau tempo atrasou minha chegada -- ele me interrompeu, grosso, andando para dentro enquanto olhava ao redor, suas botas estavam cheias de lama -- lamento o horário, criada, mas eu estou aqui para assumir as minhas obrigações.
Enquanto ele caminhava pelo hall da mansão, olhando atentamente os quadros ao redor, eu não pude deixar de reparar que além das cicatrizes no rosto, ele mancava um pouco. Certamente um herói de guerra, pelo casaco vermelho. Ele me deu as costas e não pude reparar em seu rosto, não notei nada além de sua barba e cicatrizes.
-- a Condessa já se recolheu. Então, farei o melhor possível para te alojar, vossa graça.-- comentei, andando para as escadas.
Eu imaginei que ele me seguiria até os aposentos, mas ele não se moveu. Passou as mãos pelos cabelos ensopados e me disse, de forma rude:
-- e os aposentos do Conde? Estão preparados?
Respirei fundo.
A Condessa não tinha saído dos aposentos ainda. Ela teimou que ficaria ali até que o novo conde chegaria. Mas ela não esperava que ele chegasse naquela madrugada chuvosa. Eu sabia que o homem ficaria furioso, dava pra imaginar.
-- a Condessa ainda usa os aposentos, vossa graça. Mas assim que ela acordar...
-- francamente! O conde Albert já faleceu há meses e ela ainda ocupa os aposentos?-- ele me interrompeu, em um berro que me assustou.
-- eu sinto muito, vossa graça...-- eu comecei, mas fui interrompida novamente.
-- não quero ouvir desculpas! Eu quero os meus aposentos!
Com a gritaria, alguns criados se aproximaram para ver o que estava acontecendo.
-- vossa graça...-- eu tentei argumentar.
-- eu não quero desculpas! Eu sou o senhor deste lugar agora!-- ele berrou, me fazendo dar uns passos para atrás.
Boyle surgiu entre os criados curiosos.
-- o que está havendo aqui?-- ele questionou, vendo que eu estava com um pouco de medo.
-- eu sou o novo Conde Cumberland. Boa noite a todos.-- ele se apresentou, fazendo uma reverência de forma sarcástica. -- gostaria de pousar nos meus aposentos, mas acabei de descobrir que ainda estão sendo ocupados.
-- eu lamento por tudo isso -- interrompeu a Condessa, surgindo no topo da escada, envolta em seu robe luxuoso-- eu realmente não esperava que chegasse a essa hora.
-- oh, boa noite, tia Clarisse. Não nós conhecemos ainda. -- ele respondeu, ainda sarcástico, fazendo outra reverência. -- eu gostaria de pousar em meus aposentos, se não for pedir muito.
-- como quiser, Conde Cumberland -- ela respondeu, com a classe de uma princesa. -- Amélia, providencie que os aposentos estejam de acordo com a vontade de vossa graça.
-- sim, mi Lady.
Eu chamei Maeve e subimos juntas aos aposentos do Conde. Fechamos a porta e começamos a tirar as coisas de Clarisse dali.
-- poxa vida, que homem mau educado!-- ela exclamou, chateada -- temos que tirar todas as coisas do quarto de Lady Clarisse para ele.
-- são os protocolos, Maeve.
-- eu sei, mas...poxa vida. Mas não podia esperar até o amanhecer?
-- os protocolos dizem que assim que o senhor faleceu, tudo passa a ser do próximo senhor. A Condessa deveria ter deixado os aposentos a espera dele.
-- eu sei o que dizem os protocolos, Amélia. Mas isso não justifica grosseria. Ele chega aqui meses depois, de madrugada e chega mandando em tudo!-- ela se irritou, enquanto tirava algumas coisas que eram de Clarisse do quarto.
-- tem razão. Nada justifica essa grosseria.
Enquanto ela levou os pertences de Lady Clarisse para outro aposento, eu troquei os lençóis da cama e terminei de preparar o quarto. Então, fui chamar o novo conde para se recolher. Caminhei pelos corredores e ele estava conversando com a Condessa.
--... Estava uma chuva torrencial, o que atrasou meus planos de chegar mais cedo... Mas agora estou aqui para assumir minhas responsabilidades -- ele dizia, e alguns criados estavam ao seu redor.
-- sinto muito pelo ocorrido, Conde Cumberland. Seja bem vindo a Cumberland's Hall.
Eu me aproximei e ele me olhou, sem responder a Lady Clarisse. Tinha algo comum em seu olhar, apesar de todo estresse que ele irradiava.
-- os aposentos estão prontos, Vossa graça.-- eu anunciei e ele veio até mim.
Com passos largos e determinados, apesar de mancar um pouco, seria um homem atraente, se não fosse extremamente mau educado. Eu o conduzi até os aposentos e, por todo o caminho, ele ficou em silêncio, olhando ao redor.
Abri a porta dos aposentos e disse, sendo o mais educada possível:
-- seja bem vindo aos seus aposentos em Cumberland's Hall, vossa graça.
Ele passou pela porta, olhando bem para tudo lá dentro.
-- obrigado. boa noite.
E depois fechou a porta.
Quanta grosseria em uma pessoa só.

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