Gatilho

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  Não demoramos a voltar para casa. Lady Clarisse decidiu tirar uma sesta antes do almoço e logo se recolheu para seus aposentos. O almoço seria servido um pouco mais tarde, por conta do desjejum tardio que tivemos.
  Eu, no entanto, sabia que Thomas iria me chamar para a sala de pintura. E estava ansiosa para isso.
  Tínhamos dado uma longa pausa nas pinturas e, como ele mesmo disse, fazia falta o tempo que passávamos ali.

  Caminhei até a Galeria.
  Abri a porta devagar e suspirei ao ver tudo organizado. As pinturas devidamente expostas, esculturas em lugares estratégicos... Senti nostalgia pelos dias que passei ali ao seu lado.
  Respirei fundo e caminhei pelas pinturas. Não me cansava daquilo nunca. A cada vez que eu olhava aqueles quadros, conseguia ver algo inédito ainda.
  Caminhei até chegar ao retrato de Thomas.
  O belo retrato em que Thomas revelava a todos que era um artista. E não se envergonhava de ser quem ele é.
  Suspirei novamente contemplando sua beleza.
  Continuei andando até o quadro da paisagem de Norfolk. O lago, o por do sol, os cisnes, eu. Jamais imaginaria que aquela pintura seria responsável por nos juntar novamente.

  Enquanto analisava as pinceladas inexperientes de Thomas, ouvi passos pela galeria. Virei rapidamente e pude vê-lo enquanto caminhava até mim, com as mãos nos bolsos, belo como sempre.
  -- bom dia, querida Amélia. Vejo que também sentia falta da arte...-- sua voz ecoou suavemente.
  -- bom dia, mi lorde.
  Ele sorriu de canto, diminuindo a velocidade até se aproximar de mim.
  -- pretende pintar hoje?-- perguntei, ansiosa.
  -- sim, pretendo. E também pretendia que me desse uma ideia do que fazer. Confesso que estou enferrujado quanto a isso.
  -- por que não pinta a vista do lago daqui dessa janela?
  Thomas caminhou até a sacada e olhou atentamente ao redor. Coçou o queixo e ajeitou os cabelos.
  -- uma boa ideia. Pena que tudo está meio cinza por aqui. O inverno assolou tudo.
  -- mi lorde... Nossa vida não é só primavera e verão... Também temos dias cinzas e frios.
  -- tem razão, querida.-- ele respondeu, me olhando como se visse minha alma -- vamos pintar então. Eu vou buscar o cavalete.
  Ele imediatamente saiu.
  Eu me lembrava de buscar os pincéis e as tintas, sabia onde tudo ficava. Fui até a sala anexa, separando tudo que era necessário. Era muito estranho fazer tudo com um vestido tão luxuoso. Era mais fácil com meus simples vestidos de criada.
  Quando voltei a sacada, ele já tinha posicionado o cavalete e a nova tela. Estava apenas com sua camisa branca, tinha tirado o casaco. Ao seu lado tinha a mesa onde eu colocava as tintas e pincéis. Quando eu o fiz, ele me olhou delicadamente.
  -- obrigado, assistente...
  Eu assenti, me afastando um pouco.
  -- peço permissão para trocar esse vestido luxuoso.
  -- e por que?-- ele questionou, incomodado.-- ficou tão bem em você.
  -- incomoda um pouco. Quero dizer, para fazer qualquer serviço além de caminhar por aí como uma Lady.
  -- oh, sim. Eu nem pensei nisso. Fique a vontade.

  Eu deixei a Galeria em direção ao meu quarto. Maeve surgiu do nada para me seguir.
  -- vossa graça te chamou, mi Lady?-- ela começou, me seguindo de perto.
  -- sim, maeve.
  -- já está dispensada?
  -- não. Eu vou trocar o vestido.
  Vi sua expressão de confusão surgindo.
  -- algum problema? Está maravilhosa, milady.
  -- eu sei, Maeve. Mas esse vestido é muito incômodo para o que eu preciso fazer.
  Ela ergueu uma sombrancelha, desconfiada.
  -- não, Maeve. Não é nada do que está pensando. Eu estou sendo a assistente do Conde. Ele voltou a pintar. Além disso, tenho medo de acabar sujando de tinta.
  -- ah, entendi.
  Maeve abriu a porta do quarto e foi rapidamente para o armário. Começamos a procurar algum vestido que não tivesse rendas e pedrarias. Nem que fosse digno de um jantar com Lady Clarisse.
  -- onde estão meus vestidos, Maeve?
  -- oh, acredito que foram eliminados.
  -- eliminados? Não me diga que jogou fora os meus vestidos, Maeve!-- eu me irritei.
  -- não fui eu, eu juro. Mas temos ordens de renovar tudo isso.
  -- oh, céus. Era o que me faltava! Não tenho nada para vestir!
  -- se acalme, por favor. Vou encontrar algo mais básico para você.
  Ela se agitou, procurando algo desesperadamente. Eu não pude evitar de bufar, estava furiosa com tudo aquilo. Minhas roupas foram simplesmente "eliminadas" sem meu conhecimento.

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