Viagem a Norfolk

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  Os próximos dias foram frios. A cada nova manhã, mais baixas estavam as temperaturas. Recebemos alguns hóspedes na mansão, mas, por conta do frio, não demoraram muito.
  Logo, ninguém mais se atrevia a sair de casa, pois os primeiros flocos de neve começaram a cair.
  Thomas e eu nos cruzamos em todas as refeições, porém não passamos de um bom cumprimento e gentileza. Ele me deu o espaço que eu precisava e o tempo para pensar. E os meus dias frios e solitários foram preenchidos pela angústia de não saber qual decisão tomar.
  Lady Clarisse realmente cumpriu sua promessa e não tocou no assunto nenhuma vez. Continuamos nosso hábito de tomar chá juntas, e fofocamos sobre várias pessoas conhecidas.
  Foram dias tranquilos. Apesar dos meus pensamentos secretos.

  Então, uma carta endereçada a mim chegou.
  Era Mary, respondendo minha mensagem. Ela escreveu, dizendo que estava gloriosamente bem, tinha tido mais dois filhos e contou suas novidades. Era uma carta muito longa.
  No fim, ela me informou que William Bennet tinha retornado para Norwich, onde vivia com sua esposa e filhos. Fiquei feliz ao saber que ele tinha se casado e tinha sua família.
  Fui até o escritório de Thomas, onde ele ficava a maior parte do tempo, por conta do inverno rigoroso que o impedia de sair.
  Bati na porta e pude ouvi-lo lá dentro.
  -- pode entrar -- ele respondeu.
  Abri a porta devagar.
  Thomas estava em sua mesa, incrivelmente bem trajado e ficava muito elegante enquanto trabalhava. Ele ergueu os olhos dos documentos e me olhou, e disse:
  -- oh, é você, Amélia. Algum problema?
  -- não, pelo contrário. Trago boas notícias.
  Ele sorriu e gesticulou para que eu me sentasse.
  -- pois então, diga, por favor.
  -- lembra da carta que enviei a Mary Fersnby, há alguns dias?-- comecei, me sentando na cadeira a sua frente.
  -- sim, é claro.
  -- ela me respondeu. Com notícias sobre William Bennet.
  Seu semblante se mudou rapidamente.
  -- e como ele está?
  -- ele voltou para Norwich, onde vive com a família.
  -- excelente! Iremos para lá amanhã mesmo!-- ele exclamou, se levantando imediatamente.
  -- amanhã?-- eu me surpreendi.
  -- sim. Faça as malas. Eu falarei com Hugh para que uma carruagem esteja a nossa disposição. Não posso tardar nesse assunto.
  -- mas estamos no inverno. E se estiver nevando na estrada?
  -- não se preocupe com nada disso, Amélia, querida.-- ele se agitou, ansioso.
  -- tudo bem, tudo bem...
Eu me retirei e saí a procura de Maeve. Ela era minha companheira e eu a levaria comigo, certamente. Não poderia ir até Norwich tendo apenas Thomas como companhia.

  Seria fatal para mim.
  Os boatos seriam potencialmente perigosos, se soubessem que viajei a sós com o Conde.
  E também, não sei se suportaria ficar a sós com ele em uma carruagem, visto que a atração entre nós estava perigosamente ardente.
  Maeve trazia uma pilha de roupas minhas, quando a encontrei no corredor.
  -- enfim, te encontrei -- comecei, acompanhando ela para dentro do quarto.
  -- milady estava me procurando?-- ela respondeu, um pouco surpresa.
  -- sim. Preciso que me ajude a preparar minhas malas. O Conde irá viajar e pede minha companhia.
  Maeve ergueu uma sobrancelha, pensativa.
  -- quero que vá comigo, por favor -- completei, ao perceber que ela estava suspeitando de algo.
  -- para onde vão viajar em pleno inverno?-- ela questionou, confusa -- está um frio congelante e vão sair na estrada?
  -- Vamos a Norwich, em Norfolk. Amanhã.
  -- oh, céus. Precisamos nos apressar com as malas, então. Espero que tenha bons casacos.
  -- tenho alguns.
  Maeve foi até o armário e começou a tirar casacos e vestidos, tudo que eu poderia precisar em uma viagem.
  E assim ficamos o resto daquele dia.

  Eu não tinha o costume de viajar a lugar nenhum, então as únicas malas que eu preparava era para minhas senhoras. Pela primeira vez, estava arrumando minhas próprias malas.
  Ao anoitecer, desci para a sala de jantar.
  Não tínhamos perdido esse costume, sempre nós reunimos para jantar juntos. Lady Clarisse apreciava uma boa refeição em família.
  Não era bem uma família tradicional, mal tínhamos laços. Porém, era o suficiente para nós naquele instante. Quando nós sentavamos ao redor daquela mesa, trocando algumas palavras sobre assuntos triviais, nós sentíamos uma família. Éramos três solitários dividindo uma refeição juntos, apesar de nossas muitas diferenças.
  Lady Clarisse jamais deixava de se vestir a altura. Apesar de não estarmos recebendo visitas, por conta do frio inverno, ela continuava agindo como se estivesse na corte. Aos poucos, Thomas e eu compartilhamos dessa mania e sempre nos apresentavámos a altura.
  Sentei-me e ela já estava lá.
  -- boa noite, Amélia. Como está?-- ela cumprimentou, educada e curiosa.
  -- boa noite, Lady Clarisse. O frio tem me afligido -- respondi, mostrando que estava usando um vestido bem quente.
  -- oh, essa época do ano é horrível. Venta demais, o frio é congelante e tem neblina quase o tempo todo...
  -- sim, estou percebendo.
  -- Vossa graça, o Conde, se fará presente no jantar de hoje?
  -- eu não sei. Provavelmente sim. Não recebi nenhum recado de sua parte. Por que, milady?
  -- pensei que seria apenas nós duas.
  -- oh, sim. Bom, vossa graça aprecia o jantar conosco, acredito que virá sim.
  Lady Clarisse ficou em silêncio. A lareira crepitava e eu podia ouvir o som do vento lá fora. Meu estômago roncou. Eu sentia uma fome absurda quando o clima estava daquela maneira. O frio abria meu apetite e eu não me aguentava de fome.
  Engoli em seco.
  -- o baile de inverno dos Dawson deve estar próximo -- ela comentou, preenchendo o silêncio -- eles sempre fazem um grande baile no inverno.
  -- oh, e mesmo com esse frio?
  -- sim, e não pense que não fica lotado. Todos se fazem presentes. É um grande baile mesmo.
  -- já fomos convidados?
  -- eu ia perguntar isso ao Conde. Geralmente o convite vem endereçado ao senhor da família.
  -- entendi.
  -- os Dawson são bem influentes por aqui, acredito que seremos convidados sim. E não podemos perder, de maneira alguma. Já avisei Madame Desirée para que faça vestidos para nós.
  -- oh, sim, excelente.
  -- espero que o Conde aceite o convite, primeiramente -- ela murmurou, desconfiada.
  -- convite para que?-- ele interrompeu, se aproximando, sutilmente.
  -- oh, boa noite, vossa graça -- ela exclamou, disfarçando -- os Dawson mantém a tradição de um grande baile no inverno. Estava comentando com Amélia que provavelmente vamos ser convidados.
  Thomas se ajeitou em sua cadeira, olhando para nós duas.
  -- recebi o convite, hoje a tarde -- ele informou, esperando que um dos criados servissem vinho em sua taça -- ia falar isso com vocês agora.
  -- oh, excelente!-- Lady Clarisse exclamou, eufórica -- sinto falta de grandes bailes.
  -- imaginei que iria fazer questão de comparecer, Lady Clarisse -- ele acrescentou, e depois voltou sua atenção para mim -- infelizmente, não estaremos aqui para tal baile, Amélia. Será na próxima semana e não tenho certeza se estaremos de volta até lá.
  Lady Clarisse franziu o cenho, confusa. Os criados terminaram de servir nossos pratos e taças e voltaram para suas posições.
  -- partiremos amanhã pela manhã. Suas malas estão prontas?-- ele continuou, ignorando sua tia.
  -- sim, estão. É uma pena que não poderemos ir. -- respondi, sem graça sob os olhares de Lady Clarisse.-- Maeve também preparou tudo, para me acompanhar.
  E foi a vez de Thomas franzir o cenho, mas ele estava muito mais do que confuso. Estava ligeiramente irritado.
  -- Maeve?-- ele questionou, entre uma garfada e outra.
  -- ela é minha criada pessoal, não é?
  -- não me lembro de ter estendido o convite da viagem até Maeve.-- ele rebateu, impaciente -- você partirá comigo. E apenas eu.
  Naquele instante, Lady Clarisse tinha parado de comer para tentar acompanhar a discussão que estava acontecendo.
  -- vão viajar?-- ela perguntou, sem se aguentar de curiosidade.
  -- iremos a Norwich.-- ele respondeu, de forma seca e voltou para mim -- lhe asseguro que não será necessário levar uma criada conosco.
  -- oh, milorde, eu preciso de uma criada...eu sou uma dama...-- tentei argumentar, sentindo a ansiedade crescente.
  -- até poucos dias, não tinha criada alguma e, devo dizer, que se virava muito bem. Maeve não irá conosco -- ele finalizou, com autoridade, e fez com que um silêncio ensurdecedor tomasse conta da sala de jantar.
  Lady Clarisse voltou a comer e o único som do lugar era o tilintar dos garfos.
  Engoli em seco.

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