Logo após a Ópera

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Sete anos atrás

Estendi os lençóis sobre a cama de Lady Bennet. Fazia aquilo todos os dias, assim que ela se levantava. Enquanto ela terminava de se vestir e se preparar para o desjejum, eu corria para organizar seus aposentos.
Era isso que uma criada fazia.
E era isso que eu era.
Com dezessete anos, estava fadada a ser uma simples criada em uma casa de família. Eu trabalhava na residência de Lorde Richard e Lady Caroline Bennet, desde meus catorze anos.
Meu pai era um homem de posses, por assim dizer. Mas antes que eu tivesse completado dez anos, ele tinha perdido tudo por conta de uma amante.
Depois de perder as propriedades e negócios, destruindo seu casamento e seu prestígio na sociedade, ele encontrou o fim de seus infortúnios no cano de sua arma.
Minha mãe e eu, sozinhas, desamparadas e sem o poder do nome Pevensie, nós vimos na obrigação de nos tornar criadas.
Eu tinha treze anos quando minha mãe contraiu tuberculose e se foi, me deixando órfã e sem rumo. Até que Lady Bennet me chamou para trabalhar em sua casa, por consideração a antiga amizade que tinha com minha mãe.
E não posso reclamar.
Os Bennet eram uma família numerosa e poderosa do sul do Condado de Norfolk. Tinham dois filhos e três filhas, e minhas obrigações variavam de arrumar os aposentos de Lady Bennet e acompanhar as moças em seus passeios.
Eram boas meninas, não tinha preocupação alguma com elas. Eu era tratada com respeito e isso era mais do que muitas criadas tinham.
Porém, eu desejava mais do que isso.
Eu tinha vagas lembranças de minha vida, antes que meu pai nos levasse à ruína. Eu era uma criança feliz em Pevensie House, onde tinham bailes e festas. Eu podia imaginar que minha vida ia ser perfeita e eu seria convidada para bailes e dançaria com futuros pretendentes.
Mas isso era apenas um devaneio infantil.
Enquanto eu terminava de estender os lençóis e organizar as almofadas, me perguntei se minha vida seria apenas aquilo.

Andei pelos corredores da Casa dos Bennet, levando os lençóis sujos para lavar. Tinha as grandes colchas e fronhas dos aposentos dos meus senhores, que precisavam ser trocadas com certa rotina. A função que eu mais gostava de fazer era a de camareira. Sabia montar uma cama como nenhuma outra criada.
- Amélia, Amélia!-- ouvi me chamarem e, pela empolgação, já imaginei que se tratava de algum passeio que eu teria que acompanhar.
Duas moças, Mary, de dezesseis anos e Sophie, de quinze, se aproximaram afobadas. Eram moças finas e elegantes, sempre bem vestidas e com lindos penteados. Um vislumbre do que eu seria.
- Amélia, hoje a noite vai ter uma apresentação de ópera em Norwich. Já pedi para papai que nos levasse - exclamou Sophie, sorridente e animada.
- fico feliz, Sophie. Você adora ópera.
- sim, nós adoramos. Mas precisamos que venha conosco, você é nossa dama de companhia e meu pai não permite que saíamos sem você.
- oh, Mary. Você sabe que eu adoraria - resmunguei.
Eu não adoraria coisa nenhuma. Odiava eventos pomposos da nobreza de Norfolk. Eu acompanhava as moças porque era minha obrigação ali. Embora amasse a arte e a cultura, qualquer evento que eu fosse, seria para trabalhar.
- mas eu tenho muito a fazer aqui - inventei uma desculpa, mostrando a elas os lençóis que eu teria que lavar.
- não se preocupe com isso, Amélia. No dia em que precisar nos acompanhar, minha mãe te libera de seus afazeres.-- Sophie rebateu, pegando os lençóis e colocando no chão.
- e eu nem tenho vestidos para ir a um evento assim!-- continuei no esforço de fazer de tudo para não acompanhar elas naquela noite.
- não se preocupe com isso, Amélia - repetiu Sophie, insistente.
- pode usar um dos meus. Meus pais também vão conosco. Mas você sabe que eles conversam com todo mundo. Só precisam que faça companhia a nós duas. Hellen não irá, e nem meus irmãos. Você fica com a gente e nós prometemos que não sairemos de perto de você.
Eu assenti, me dando por vencida.
- certo, certo. Eu irei com vocês.
Ela emitiram alguns gritinhos e saíram depressa.
As duas estavam a procura de pretendentes. Iam em eventos e bailes para dançar com rapazes da nobreza, se ajuntavam em rodas de outras moças granfinas e conversavam sobre seus assuntos.
Meu trabalho era garantir o bem estar delas.
Como eu disse, eram boas meninas. O que facilitava meu trabalho. Era um pouco cansativo, pois eram eventos que terminavam muito tarde. E enquanto elas dormiam no outro dia, eu tinha lençóis para lavar.
O lado bom era que eu adorava a comida desses eventos. E também podia apreciar a arte de camarote. Podia sentar ao lado dos Bennet em seus lugares VIPs, assistindo as apresentações com a melhor vista.

Lady Bennet realmente me liberou de meus afazeres. O que me deu algumas horas de tranquilidade. Que foram preenchidas por escolhas de vestidos, calçados e penteados. As duas moças tinham de tudo, do bom e do melhor ao seu dispor. A indecisão nas escolhas era algo comum por ali.
Tanto para mim quanto para Mary e Sophie.
Quando começamos a nos arrumar, parecia que nada ia dar certo. Precisava de espartilhos e meias calças, os cabelos se recusaram a ficar do jeito certo. Uma tribulação.
Porém, no final, deu tudo certo.
Mary me emprestou um de seus vestidos na cor lilás, delicado e suave. Leves fitas e pouco bordado, eu me senti uma verdadeira lady.
Enquanto as duas tinham seus cabelos loiros, eu ostentava cabelos castanhos. Fizemos penteados elegantes. E quando nós três ficamos prontas, ninguém poderia dizer que eu era uma simples criada.
Lorde Richard Bennet tinha uma bela carruagem e cocheiros a seu dispor. Embora Norwich fosse um pouco distante, o conforto da carruagem fazia com que ninguém se importasse com a viagem.
Chegando no Teatro, eu pude ver que a nobreza inglesa se fazia presente. Duques e Condes caminhavam entre as pessoas - eu conhecia as pessoas de tanto ouvir os Bennet conversando sobre eles.
As damas ostentavam belos vestidos e muitas jóias, todo mundo ali queria exibir suas fortunas.
Caminhei ao lado das moças, que estavam eufóricas. Logo encontraram com suas amigas e começaram a conversar sobre assuntos que não eram de meu interesse.
Lorde Richard e Lady Caroline Bennet caminhavam entre os convidados, cumprimentando a todos. Eram pessoas influentes e conhecidas.
E já eu, me recolhi na minha insignificância.
Conforme fomos até o nosso camarote, eu contemplei a estrutura daquele lugar. Era como o centro da arte ali.
E como boa admiradora da arte, eu apreciei a cada instante.
Para minha surpresa, era Mozart, A Flauta Mágica. Um esplendor em forma de ópera, recém estreada em Viena, levada com exclusividade para Norwich, apenas para a nobreza assistir.
A nobreza e eu, uma simples dama de companhia.
Enquanto eu limpava as lágrimas que tinham caído durante a Ópera, precisava acompanhar de perto as moças, cujo entendimento não conseguiu absorver a magnitude de uma Opera de Mozart.
Aquilo era uma injustiça.
Elas se preocupavam com o baile que estava acontecendo logo após a apresentação. Se reuniram com suas amigas e começaram com conversas fúteis.
Eu só queria alguém para discutir a respeito da coisa mais esplendorosa que eu já havia assistido na vida.
Era 1793, e as moças se preocupavam em conversas fúteis! Elas eram ricas e poderosas, podiam ter acesso a todo tipo de arte e cultura, porém se preocupavam com a cor ideal dos seus vestidos para o verão.
Garanti que elas comessem e bebessem. Não saí de perto delas por nada, acompanhei elas ao banheiro. Ajudei a prender os fios de seus cabelos que estavam se soltando e a retocar seus batons. Eu estava lá para pegar uma taça extra de suco, ou até mesmo um quitute. Verificava a todo instante como elas estavam.
Fiz o meu melhor.
Já eram altas horas, e nada do baile acabar. Haviam danças no salão, comidas e bebidas sendo servidas e tudo que eu queria era tirar aquele vestido e ir para a casa descansar.
Me afastei um pouco, quando vi que seus pais se aproximaram. Lady Caroline me permitia um descanso quando estava por perto das filhas. E eu não podia desperdiçar.
Caminhei até às portas do pátio, onde havia um jardim bem cuidado. Algumas pessoas conversavam ali, mas eram poucas e falavam baixo. Talvez alguns casais. Pois eu não podia ouvir o que diziam e o silêncio era tranquilizador.
Enquanto suspirei, aliviada, ouvi alguém se aproximando.
- precisa de um momento para absorver a maravilhosa Ópera que assistimos?-- perguntou o jovem, que se aproximava.
Vestia um terno elegante, era um pouco mais alto do que eu. Tinha cabelos escuros que caiam por suas orelhas e um sorriso estonteante, seu queixo era bem marcado e tinha lindos olhos. Era o jovem mais bonito que eu já tinha visto na vida. E olha que os Bennet conheciam vários rapazes bonitos.
- oh, sim - respondi, tímida e confusa - será necessário alguns dias para eu conseguir processar tudo que assisti.
- Mozart causa esse efeito nas pessoas - ele comentou, se aproximando ainda mais, estendeu a mão, dizendo: - sou Thomas Cumberland, de Suffolk. E a milady?
- Amélia Pevensie. - eu cumprimentei, estendendo a mão para ele.
Surpreendentemente, ele beijou minha mão, me causando um arrepio, mesmo que estivesse de luvas.
- Encantado em conhecê-la, Lady Amélia. A senhorita é daqui mesmo?
- Sim, vivo em uma propriedade um pouco mais distante de Norwich.
Eu sei, deveria ter dito a ele que era a dama de companhia das irmãs Bennet, cujas presenças ali eram ilustres. Mas não. Eu não queria ser vista como uma criada, não diante de um cavalheiro como Thomas.
- oh, sim. Está acompanhada com alguma dama? Ou de seus pais?-- ele perguntou, olhando ao redor - Adoraria ser apresentado a sua família.
Meu coração gelou e eu forcei um sorriso.
- quero dizer, me perdoe se fui muito atirado, milady. Acabou de me conhecer e eu já quero conhecer sua família!-- ele se desculpou, sorrindo, passou os dedos entre seus fios de cabelos e disse, olhando ao redor novamente - Gostaria de me acompanhar num passeio pelo jardim?
Eu pisquei, incrédula. E ele ficou em silêncio, me olhando, esperando pela minha resposta.
Olhei para dentro do salão, onde Lady Caroline e suas filhas conversavam e riam, despreocupadas e sem lembrar que eu estava ali.
- eu adoraria, mi lorde.-- eu respondi, com borboletas no estômago.
Ele estendeu o braço para mim.
Começamos a breve caminhada pelo jardim, era bem iluminado e bem cuidado, podíamos ver diversas flores e cascatas, apesar de já ser bem tarde.
- É sua primeira Ópera, milady?-- ele perguntou, meio tímido.
- desta proporção, sim. Já assisti algumas, mas nem se comparam.-- eu respondi, me sentindo confortável ao lado dele.
- eu já assisti várias e, posso dizer que me sinto da mesma forma.-- ele comentou - Acredito que te vi no Camarote.
- sim, eu estava no Camarote.
- ao lado das irmãs Bennet.
Eu parei de andar sentindo um embrulho no estômago. Certamente ele vai perguntar sobre elas, o interesse dele está nas irmãs Bennet e não em mim, pensei aflita.
- exatamente, lorde Thomas.-- eu respondi, tomando coragem. - eu sou dama de companhia das irmãs Bennet. Estou aqui a pedido delas. Se deseja que eu te apresente a elas, diga logo.
Thomas ficou boquiaberto. Eu podia ver surpresa em seus olhos.
- oh, não, lady Amélia. Não é isso.-- ele enfim disse, se explicando. - Eu só gostaria de saber se eles eram seus amigos, para que fosse mais fácil de te encontrar depois de hoje.
Eu não disse nada, não conseguia dizer nada.
- mas já que me disse que é a dama de companhia das irmãs Bennet, eu sei bem onde te procurar - ele confessou, sorrindo.
Quando eu abri a boca para responder, ouvi me chamarem.
- Amélia, onde você está? Nós estamos indo para casa!
Olhei para Thomas e falei, me afastando dele.
- estão me solicitando. Obrigada pela companhia, Lorde Thomas. Agora devo ir.
- foi um gosto estar na sua presença, milady. Eu irei te procurar.-- ele respondeu, beijando minha mão novamente.
Enquanto eu caminhei para dentro do salão, à procura dos Bennet, senti meu coração acelerar.
- onde você estava, Amélia?-- perguntou Sophie, sentando ao meu lado na carruagem - procuramos você por toda parte.
- fui tomar um ar no jardim - respondi, sem dar mais explicações.
- ah, sim. O que achou da Ópera e do Baile? Valeu a pena vir, não valeu?-- Mary comentou, ainda eufórica.
- eu adorei. Ainda bem que eu vim com vocês.
Ela sorriram, satisfeitas.
Chegamos em casa já estava quase amanhecendo. Eu sentia o cansaço se apoderar de mim e tudo que eu queria era dormir.
Eu ainda tive que ajudar as moças a se despir, pois eram tantos laços e tecidos que elas, na situação de cansaço em que estavam, jamais conseguiriam fazer isso sozinhas.
Como recompensa, consegui o dia de folga. Poderia descansar finalmente.

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