Novo Cargo

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  Thomas ficou recolhido em seus aposentos, enquanto posava para seu retrato, por dias. O pintor chegava pela manhã e ficavam reclusos até o entardecer.
  A bandeja com as refeições eram deixadas do lado de fora de seus aposentos. Ele não requisitava ninguém, não pedia por nada. Era como se nem estivesse em casa.
  Eu ansiava por encontra-lo, queria conversar com ele a sós. Queria me aproximar ainda mais dele, para finalmente contar a ele.
  Se passou uma semana e eu não encontrei com ele nenhuma vez sequer. Ele não chamou por mim e nem nos cruzamos pelos corredores.
  As fofocas esfriaram, graças a Deus, ninguém mais tocava no assunto. Já que não tinha conteúdo para eles comentarem.
  Thomas não tinha solicitado a mim por vários dias e isso acalmou as línguas da criadagem.
  O paisagista iniciou as obras no jardim, e já podíamos ver um breve rascunho de como ficaria o tal lago. Pela pressa que os trabalhadores se agitavam, acreditei que o prazo seria curto.
  A criadagem se preocupou com a tal obra e os trabalhadores que começaram a frequentar Cumberland's Hall, dando assim, um pouco de tranquilidade para mim.
  No fim dessa semana, o pintor foi embora ao entardecer, como de costume. E Ted foi até a dispensa me chamar.
  -- Conde Cumberland te solicita na sala de artes.-- ele disse, de forma direta, mas eu percebi que ele também fazia parte do grupo de fofoca e estava interessado no assunto.
  -- já estou indo. Obrigada, Ted.
  Subi as escadas rapidamente, colocando os fios de cabelo rebeldes dentro da touca. Alisei os vestidos antes de bater a porta.
  Bati uma vez só, e imediatamente ele abriu.
  -- ao seu dispor, vossa graça -- saudei, com uma reverência.
  -- minha cara, devo insistir, mais uma vez, para deixar essas formalidades de lado.-- ele falou, com um sorriso, dando me licença para entrar.
  A luz do por do sol entrava pelas grandes janelas e iluminavam as obras que estavam ali, o ambiente ficou muito acolhedor. Exatamente como eu tinha planejado.
  -- no que posso servi-lo, mi lorde?-- insisti nas formalidades, o que fez ele revirar um pouco os olhos.
  -- Amélia, queria que fosse a primeira a ver.
  -- ver o que, mi lorde?
  Ele caminhou até a varanda da sacada, onde, mesmo de longe, eu podia ver o cavalete. Ele gesticulou para que eu o seguisse.
  Me aproximei dele e quando olhei para o cavalete, era uma belíssima pintura. Com cores suaves, belas pinceladas formavam uma paisagem, com campinas verdes e o céu azulado, com algumas aves no horizonte.
  Precisei me aproximar ainda mais para contemplar com cuidado.
  -- o que achou?-- ele perguntou, ansioso.
  -- maravilhoso...-- sussurrei, virando para olhar em seus olhos.
  -- é o que você acha?
  -- eu acho que mi lorde possui um talento que estava escondido...
  Ele sorriu, um pouco envergonhado. Não imaginava que ele ficaria lisonjeado com o elogio e foi satisfatório ver seu sorriso tímido.
  -- obrigado, Amélia.
  -- pensei que fosse me mostrar o seu retrato.
  -- oh, se quiser, eu te mostro também.-- ele respondeu, voltando para dentro da sala de artes.
  Eu o segui rapidamente. Thomas me mostrou o quadro pendurado na parede, exatamente no lugar que eu tinha sugerido, coberto com um tecido púrpura.
  -- está bem onde você sugeriu -- ele apontou, orgulhoso.
  E antes que eu pedisse, ele descobriu o retrato.
  Era um retrato seu, enquanto pintava um quadro. Ali mesmo, na varanda. O pintor era muito experiente, pois enquanto Thomas pintava seu próprio quadro, ele conseguiu retratar perfeitamente.
  Estava ele, cabelos escuros penteados para trás, segurando um pincel. Estava apenas com sua camisa branca, sem paletó. As mangas dobradas no cotovelo. Seu olhar atento na sua própria tela, sua pele iluminada pela luz do sol na sacada.
  Precisei engolir em seco.
  Estava incrivelmente maravilhoso. Praticamente dava para ver a aura de atração que ele exalava.
  O retrato na parede estava no lugar exato, as cores alaranjadas do por do sol iluminavam perfeitamente cada detalhe da moldura elegante do retrato.

  -- ficou...ficou perfeito -- consegui dizer, enquanto analisava cada detalhe.
  -- exatamente como sugeriu. Eu sabia que era a pessoa ideal para me ajudar com isso.-- ele comentou, enquanto nós dois olhavamos para a pintura a nossa frente.
  -- obrigada pela confiança, mi lorde.
  -- meu nome é Thomas, Amélia. Gostaria que me chamasse assim. Enquanto estivermos a sós.
  Eu pisquei, desconcertada. Aquele acordo novamente, exatamente como a sete anos atrás.
  -- como desejar...Thomas -- eu disse seu nome com toda a alegria do meu coração.
  Eu queria contar a ele, mas não sabia como.
  -- eu, como senhor desta propriedade, quero que deixe suas funções de governanta, Amélia.-- ele falou, de forma tranquila, mas me assustando -- a partir de amanhã, você não é mais a governanta de Cumberland's Hall.
  -- como assim?-- eu exclamei, surpresa, sentindo o medo tomar conta de mim -- fiz algo que te desagradou?
  -- não, pelo contrário. Quero que seja minha assistente pessoal.
  -- não prefere alguém como Boyle, ou Ted? Por que eu?-- me defendi, ainda espantada.
  -- não, não. Eles não tem a visão como a sua. Preciso de alguém para me ajudar com isso-- ele apontou para a sala de artes em geral -- eu confio no seu olhar crítico.
  -- tenho certeza de que encontrará algum estudante de arte por aí. Eu gosto de ser uma governanta.
  -- não seja tola, Amélia. Sua vida pode ser muito mais do que ser uma simples criada ou governanta. Sendo minha assistente, você vai me acompanhar enquanto eu estiver pintando. E eu pretendo pintar muitas coisas pelo mundo.
  Meus olhos começaram a se encher de lágrimas. Eu não suportaria ficar ao lado dele sabendo que ele não se lembrava de mim. Eu passaria o tempo todo acompanhando, sem que ele soubesse de tudo que eu sentia.
  Fiquei feliz por Thomas estar realizando seu sonho de ser um artista, mas eu não sabia se estava preparada para aguentar tudo isso ao lado dele.
  -- eu...eu...-- comecei a dizer, mas as palavras não saíram.
  -- não se preocupe com Lady Clarisse. Eu vou encontrar outra governanta para ficar em seu lugar. A partir de amanhã de manhã, esteja aqui na sala de artes.
  -- mas...
  -- Amélia, não se preocupe com nada. Só esteja aqui amanhã de manhã. E nada dessas roupas de criada, por favor.
  -- como quiser ,mi lorde.
  -- e peço que chame Boyle, por gentileza. Pretendo começar a enviar os convites do baile.
  -- o baile?
  -- sim. O Baile de Cumberland's Hall, em que eu vou me apresentar oficialmente ao povo e abrir a propriedade para visitação. E irei inaugurar a nova sala de artes.
  -- será uma grande festa.
  -- sim. Marcarei para o final do mês.
  -- me dê licença, vou me retirar.
  Ele concordou com a cabeça e eu saí da sala de artes. Meu coração batia desenfreado no meu peito.

  Caminhei pelos corredores e desci as escadas até o hall de entrada da mansão. Boyle estava acendendo os castiçais.
  -- Boyle -- chamei, me aproximando.
  -- diga, Amélia.
  --  Vossa graça, o Conde, te solicita na sala de artes.
  -- pensei que você fosse a solicitada -- ele brincou, mas logo viu que eu não estava brincando -- o que ele pode querer comigo?
  -- vá até lá e descubra.
   Antes que ele respondesse, eu dei as costas.
  Como o Conde Cumberland tinha dito, eu não era mais a governanta daquele lugar. Minha função era outra. E quando todos soubessem que eu seria a sua assistente pessoal, a fofoca ia tomar conta da mansão.

  Fui até meus aposentos e fiquei pensativa, quando percebi que a maioria das minhas roupas era de criada. Eu não tinha praticamente nenhum bom vestido para acompanhar o Conde, quero dizer, nenhum a sua altura.
  Escolhi um vestido lilás, o melhor entre todos. E ainda assim não chegava aos pés de um verdadeiro vestido de uma dama.
  Eu precisava deixar tudo pronto para a manhã seguinte. Mas antes, precisava contar a todos que eu não seria mais a governanta.
  Quando me sentei a mesa dos criados para o jantar, logo depois que o jantar de Thomas e Lady Clarisse tinha sido servido, Boyle e Maeve conversavam sobre o baile.
  -- ele vai começar a enviar os convites -- dizia Boyle, ansioso.
  -- vai ser uma grande festa?-- perguntou Maeve, animada.
  -- pelo jeito vai ser um baile de grandes proporções -- eu comentei, fazendo parte da conversa.
  -- não temos um baile aqui há anos. A saúde do conde Albert era frágil, nós últimos anos de sua vida. Então, quase não tinha festa por aqui -- contou Alfred, como se relembrasse de tudo que dizia.
  -- então se preparem, pois Cumberland's Hall vai abrir para visitação em grande estilo.-- informei, despreocupada.
  -- o que você está sabendo, Amélia?-- instigou Polly, um pouco curiosa.
  -- nem precisa saber de muita coisa, Polly. O Conde Cumberland terminou seu retrato e está fazendo uma obra no jardim -- acrescentou Andy, colocando uma mão no meu ombro -- Amélia não precisa usar sua preferência para saber sobre isso, quando está óbvio.
  -- minha preferência?
  -- sim, Amélia. Precisa conseguir informações privilegiadas para nós -- brincou Boyle.
  -- e se eu dissesse que estou mais perto do que nunca, de conseguir todas as informações privilegiadas?-- eu provoquei, atraindo a atenção total de todos.
  -- não me diga!-- exclamou Maeve, espantada
  -- o que houve? Vai ceder a ele?-- Andy questionou, igualmente surpresa.
  -- o que? Você está louca?-- eu exclamei, um pouco envergonhada pelo atrevimento dela.
  -- ora, Amélia. Não faça rodeios!-- repreendeu Alfred, se aproximando -- diga logo o que tem pra dizer!
  -- Conde Cumberland me destituiu do cargo de governanta. A partir de amanhã, sou sua assistente pessoal.
  Queria poder descrever a expressão de espanto que tomou conta de todos ali. Andy e Maeve estavam boquiabertas, Polly e Alfred tampavam a boca com a mão e Boyle estava atônito.
  -- como assim?-- Andy gritou, completamente incrédula -- assistente pessoal? É assim que chamam agora?
  -- ah, não seja ridícula, Andy! O Conde Cumberland decidiu se dedicar a pintura e pediu minha ajuda. Segundo ele, eu tenho um bom olhar crítico.-- me defendi.
  -- eu sei bem de que pintura ele está falando!-- se atreveu Alfred, dando uma risada nasal.
  -- ah, não sejam ridículos. Pensei que podia contar algo a vocês, sem que me ridicularizassem...
  -- eu sinto muito, Amélia, mas é difícil de acreditar que o Conde não quer tirar um proveito de sua assistente pessoal -- comentou Maeve, me olhando torto.
  -- bom, se ele tentar alguma coisa, eu vou...
  -- você não vai fazer nada!-- interrompeu Andy, agitada -- se o Conde desejar você, você vai aceitar! Você vai usar isso para melhorar a sua vida! Não seja boba, Amélia!
  -- ora, Andy! Quem é você para me dizer uma coisa dessas?-- eu me irritei.
  -- alguém que quer ver seu bem, sua tola!-- ela rebateu, ficando cada vez mais alterada-- escute bem: o Conde Cumberland, o Conde de Suffolk, está demonstrando interesse em você, sua tola! Qualquer mulher, em um raio de duzentas milhas, daria a vida pela chance que você está tendo!
  -- Andy, por favor, pare com isso. Ele não tem interesse em mim!
  -- ah, pessoal, eu desisto. Se ela quer continuar nessa vida de criada, que acorda de madrugada e vai dormir por último, usa esses vestidos horrorosos e não pode fazer um penteado no cabelo, quem sou eu para dizer alguma coisa!
  Eu não disse nada. Até por que, no fundo, eu sabia que ela queria meu bem e estava com razão.

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