Desavença familiar

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  A manhã seguinte ao baile, iniciou com a mesma agitação.
  Lady Clarisse irradiava uma ansiedade sem precedentes. Logo, pela manhã, no desjejum, ela não parava de falar.
  Comentava sobre os presentes no baile, suas amigas, tinha fofocas sobre muitas pessoas, opiniões formadas e uma alegria sem fim.
  Eu nem tinha tempo de responder o que ela me dizia, pois ela não me dava espaço. Eram tantos assuntos e tanta agitação que eu mal podia acompanhar.
  Enquanto ouvia seus comentários, só podia me concentrar na jóia que estava no meu dedo. Pesada, luxuosa. E real.
  -- ... E então ela me perguntou para quando seria o casamento...-- ela dizia, ansiosa -- e eu me dei conta de que não me disse nada sobre a data do casamento.
  -- Thomas ficou de ir a Catedral de St Edmundsbury, para dar início aos proclamas -- respondi, voltando a mim.
  -- oh, a catedral!-- ela suspirou, pensativa -- então, imagino que vocês tem pressa...
  -- bem, minha tia... Perdemos tempo demais. Não há motivo para esperar mais.
  -- tem razão. Além do mais, vocês tem uma química perfeita juntos. Morando juntos nessa mansão, as coisas podem fugir do controle -- ela comentou, cautelosa, enquanto me olhava por cima de sua xícara.
  Eu não respondi, disfarcei comendo alguma coisa.
  Mas aquela era sim uma preocupação genuína.
  Continuamos comendo em silêncio e a sós. Thomas não compareceu ao desjejum e, provavelmente, não iria dividir o mesmo espaço comigo tão cedo.

  Alguns convidados tinham se hospedado para o final de semana, inclusive o pai de Thomas. Porém, eu e Lady Clarisse tivemos algum tempo de privacidade.
  Era um pouco cansativo receber hóspedes logo após um grande baile, mas Cumberland's Hall atraía um bom número de pessoas que apreciavam estar ali.
  Felizmente, a galeria entretinha grande parte dos hóspedes. Assim como o amplo jardim. O que nós dava uma tranquilidade maior.
  Porém, na hora do almoço, foi inevitável encontrar com George a mesa.
  Thomas me abandonou e não compareceu. Certamente tinha ido a Catedral e não tinha voltado a tempo.
  Então, me sentei em silêncio.
  Lady Clarisse dava atenção as suas amigas que tinham ficado também, e eu estava sozinha com George novamente. E seu olhar sobre mim, era incômodo, como se ele me julgasse a todo instante.
  Com a comida servida em nossos pratos, aproveitei para me distrair enquanto me alimentava. Evitava que alguém conversasse comigo.
  Vez ou outra, percebia os olhares dos presentes sobre o anel que pesava em meu dedo.
  Sua presença me incomodava. Era grande e pesado, e incrivelmente belo. Uma jóia digna dos Cumberlands.
  E também George, não desviava seu olhar dele.
  Depois que almoçamos, foi servida a sobremesa. E então, George limpou a garganta, chamando minha atenção discretamente.
  -- quer me dizer alguma coisa, lorde George Cumberland?-- perguntei, um pouco afrontosa, chamando-o pelo nome.
  -- estranhei a ausência de Thomas, logo no dia seguinte após o noivado -- ele comentou, um pouco malicioso.
  -- certamente foi até a Catedral, para dar início aos proclamas de matrimônio -- eu falei cada palavra com muito gosto, orgulhosa.
  -- estou com a impressão de que Thomas está evitando estar contigo.
  -- ah, bobagem. Foi apenas uma impressão.
  Ele franziu as sobrancelhas, me julgando.
  -- saberia me dizer quando ele volta?
  -- difícil dizer. Vossa graça é um homem muito ocupado, afinal ele é um Conde. Certamente tem vários assuntos que requerem sua atenção -- rebati, enquanto levava minha taça aos lábios.
  George assentiu, mas eu vi em seu olhar que ele não tinha se dado por vencido.
  Ele tinha uma opinião formada sobre mim e dificilmente a mudaria. Aos seus olhos, eu era uma interesseira que se aproveitou de seu filho fragilizado.
  Terminamos a refeição e tudo que eu queria era me afastar dele. Saí pelos corredores e subi para a Galeria. A maioria das visitas estavam acompanhando Lady Clarisse para uma conversa tranquila.
  Eu amava estar naquela Galeria.
  Thomas frequentemente trazia novas obras para compor seu museu particular. Quando entrei, percebi novas esculturas por ali.

  Caminhei tranquilamente, enquanto sentia o anel em meu dedo. O anel de noivado. O que me trazia para a dura realidade que mais parecia um sonho.
  Tudo tinha se reiniciado naquela Galeria, nossos olhares e flertes. Nossa reaproximação. Todavia, não estávamos mais frequentando Aquele lugar.
  As pinturas tinham sido interrompidas e doía mais do que eu gostaria de admitir. Aquele era nosso momento. Sempre fora.
  Andei até o pôr do sol de Norfolk.
  Não me cansava de olhar para a pintura que tinha reunido a nós dois.
  Fiquei olhando para ela por algum tempo e fui interrompida por um pigarro. Me assustei com a presença de George.
  Ele não cansava de me perseguir.
  -- lamento se interrompi seu momento -- ele resmungou, se aproximando de mim.
  -- não foi incomodo algum. Afinal, posso vir aqui quando eu quiser. Fique a vontade -- respondi, me dirigindo para a saída.
  -- peço que fique, por gentileza -- sua voz saiu mais calma e menos ameaçadora.
  Eu não respondi de imediato, apenas olhei atentamente para ele, em busca de alguma pista sobre seu interesse.
  -- quero te pedir desculpas, Lady Amélia Pevensie -- ele começou, sem tirar os olhos de mim -- devo confessar que não estou satisfeito com esse casamento repentino de meu filho. Mas não tenho o direito de ser rude contigo.
  -- não, não tem.
  Ele piscou, concordando com a cabeça.
  -- por isso, peço que me desculpe.
  -- eu o desculpo, lorde George Cumberland. Com a condição de que esse desconforto não esteja mais aqui, quando Thomas chegar.
  Ele forçou um sorriso e nada disse.
  Voltei para a saída.
  E novamente ele me interrompeu.
  -- foi por conta do quadro?
  -- senhor?-- voltei minha atenção para ele.
  -- nas vésperas da inauguração desta galeria, eu trouxe essa pintura para Thomas. Antes disso, não havia menção alguma de um relacionamento entre vocês dois. Tudo aconteceu após aquele baile.
  -- sim, mi lorde. Ao contrário do que parece, Thomas tinha sentimentos por mim desde que ele chegou nessa casa. Mas ele não se permitia, por conta da moça que ele amava antes de ir a França.
  -- e, afinal de contas, quem é essa moça?
  -- sou eu.
  Ele me olhou com espanto. E depois encarou o quadro, onde tinha uma silhueta de uma moça.
  -- a moça de Norfolk? É você?
  -- sim, sou eu.
  -- e como veio parar aqui?
  Eu apenas sorri, pensando em como contaria ele toda a história.
  -- oh, Lady Amélia! Thomas procurou por você por anos!-- ele exclamou, incrédulo.
  -- sim, eu procurei -- Thomas respondeu, entrando pela porta da Galeria.
  Meus olhos brilharam ao vê-lo.
  Ele caminhou até mim, como se apenas eu existisse no mundo. Se controlando para não me dar um beijo. Apenas segurou minha mão delicadamente.
  -- eu procurei por ela por anos. E desisti. -- ele continuou a dizer, deixando seu pai boquiaberto -- me tornei uma pessoa amarga e revoltada. Quando cheguei aqui, estava completamente irreconhecível. Mas ela estava aqui. Amélia era a governanta de Cumberland's Hall.
  -- governanta?-- George rebateu, me olhando de cima a baixo, a mudança em seu olhar foi clara.
  -- ela tinha sido contratada pela Condessa viúva para ser a governanta da mansão. Para que tudo estivesse em ordem, quando eu assumisse a herdade.-- Thomas respondeu, com firmeza.
  -- então você vai se casar com a governanta?
  -- ela não é a governanta. Não mais.
  -- oh, céus, Thomas! Quem mais sabe disso? Pense bem no que está fazendo!-- George se enfureceu novamente -- você é um Conde!
  Meus olhos se encheram de lágrimas e precisei baixar a cabeça, para que ele não me visse daquela forma. Me senti frágil ali.
  O corpo de Thomas se enrijeceu ao meu lado e seu olhar se modificou.
  -- eu pensei no que estou fazendo. Pensei muito. Desde o dia do baile, quando me lembrei dela de verdade, tenho pensado nisso sem parar. Acontece que Amélia é a pessoa que estou procurando há anos!
  -- ela não é a moça certa para você, Thomas! Ela não tem título, não tem família, não tem nada!
  -- ela tem a mim. E todo meu amor.
  Quando mais George berrava, mais eu sentia vontade de chorar. Meu coração batia acelerado no peito e nem mesmo a presença de Thomas era capaz de me acalmar.
  -- não pensa sobre o que vai acontecer, quando as pessoas souberem disso? Ela usa sobrenome Pevensie. Os Pevensie faliram há décadas! Não existe mais Lady Pevensie!-- George continuava a atacar.
  -- nosso casamento está marcado para daqui duas semanas. Logo será Amélia Cumberland, Condessa de Suffolk. Então, basta desse assunto.-- Thomas interrompeu, irritado -- eu irei me casar com ela, quer você queira, quer não. Se não pode aceitar isso, peço que deixe Cumberland's Hall.
  Um silêncio doloroso tomou conta da galeria.
  George concordou com a cabeça, incrédulo, e deixou o lugar.

Thomas me ofereceu um abraço, quando viu que eu estava prestes a desabar. Me aninhou em seu peito, onde deixei as mais sinceras lágrimas escorrerem.
  -- sinto muito por isso -- ele lamentou. -- não imaginava que ele seria tão rude. Na verdade, não esperava nada disso vindo dele.
  -- pensei que ele soubesse e aceitasse.-- resmunguei, ainda contra seu corpo.
  -- eu não tinha contado.
  -- eu não deveria ter dito nada... Sinto muito... Mas ele viu a pintura e...
  -- ei, está tudo bem. Fico aliviado que ele saiba agora. Um pouco decepcionado com sua reação, mas não podemos controlar isso.-- ele me acalmou, carinhosamente.
  -- ele deixará Cumberland's Hall. E provavelmente não virá ao casamento...
  -- eu posso superar isso.
  -- mas é o seu pai.
  -- se meu pai não consegue aceitar a minha felicidade e nem ao menos ficar feliz por mim, é bom que não venha ao nosso casamento.
  Eu consegui sorrir. Aliás, era impossível não sorrir olhando para ele.
  -- oh, minha querida... Você terá um casamento em maio. Como as moças influentes.
  Me soltei de seus braços e me afastei.
  Eu nem tinha me dado conta. Thomas tinha marcado a data do casamento e seria em maio. Um casamento na primavera. Como nos melhores sonhos.
  Eu sorri, pensando em tudo.
  Haveria muitas flores, certamente. Assim como boas músicas e o clima agradável. Oh, céus. Eu iria me casar com Thomas em maio.
  -- o que foi, minha querida? Prefere que eu mude a data?-- ele se preocupou.
  -- oh, não... Não... Está perfeito. Um casamento em maio. Como nos melhores sonhos, meu bem...
  Thomas sorriu e senti vontade de beija-lo. Meu corpo ardeu de paixão. Tinha sentido sua falta.
  Olhei para ele. Thomas estava sorrindo e em seus olhos eu via que ele retribuía o desejo. Ele estendeu sua mão, encontrando a minha.
  -- duas semanas. Apenas isso.-- ele disse, levando minha mão aos lábios e beijando carinhosamente -- não deixe que nada te abale, eu te peço. Estamos juntos, minha querida. E ficaremos assim para sempre.
  -- sim, ficaremos.
  -- sentiu falta da Galeria?-- ele mudou de assunto, olhando ao redor.
  -- claro que sim. Fiquei dia após dia te fazendo companhia enquanto trabalhávamos nela. E agora nem me lembro o último dia que viemos aqui.
  -- oh... Você sabe bem porque. Prometo que após o casamento, retornaremos as nossas pinturas.
  -- promete mesmo?-- perguntei, animada.
  -- sim. Eu prometo.
  Ele se aproximou das novas esculturas.
  -- essas daqui são novas, você deve ter percebido. Presente de noivado.
  -- oh... Percebi sim. São belas peças -- respondi, olhando com atenção para as esculturas, bem polidas.
  -- imagino que tenha aberto seus presentes de noivado também.
  -- confesso que ainda não.
  Thomas franziu as sobrancelhas, confuso.
  -- não tive tempo -- acrescentei, disfarçando.
  -- pois então, não perca tempo. Irei para o escritório agora e você tem o resto do dia para descansar. Não deixe que minha tia ocupe seu tempo com suas visitas.
  -- ela anda com uma multidão a seguindo -- eu brinquei, enquanto nos dirigimos para a saída da galeria.
  -- sim. Ela nasceu para ser a líder de um grupo. E seu tempo está acabando. Deixe que ela aproveite cada segundo.
  Caminhamos em silêncio pelos corredores.
  Não havia nada a ser dito. Uma palavra em falso e poderíamos terminar em um daqueles quartos e isso seria uma perdição.
  Thomas mantinha uma distância segura.
  E era necessário.

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