Pintura ao pôr do sol

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  Assim que o dia raiou, eu já estava de pé. Organizei uma cesta com pães, frutas, uma botija de água e mais algumas coisas. Precisava estar preparada para o dia que iria se seguir. Não sabia bem onde ficava o tal lago, para dizer a verdade, o máximo que eu conhecia da propriedade eram os jardins ao redor da casa.
  Terminei de guardar os mantimentos, vesti minha capa e fiquei aguardando Thomas aparecer. Sentia uma onde de ansiedade correr pelo meu corpo. Estava me preparando para um dia em que eu não fazia ideia do que poderia acontecer.
  A casa estava agitada, visto que os cavalheiros estavam partindo para a caçada. Algumas esposas estavam aliviadas, as filhas estavam preocupadas. Lorde Richard Bennet era um excelente caçador e iria acompanhar seus hóspedes até a floresta próxima.
  Não demorou muito e eles partiram.

  E também, Thomas apareceu na cozinha, vestindo botas e uma capa escura e elegante. Me olhou e cumprimentou, sorrindo:
  – bom dia, milady. Está pronta?
  – sim, mi lorde.
As criadas olharam de canto, mas continuaram o que estavam fazendo. Fingiam que nada estava acontecendo, mas eu sabia que seus ouvidos estavam atentos.
  – então podemos ir?-- ele estendeu o braço para mim.
  – sim, mi lorde.
  Quando me aproximei, ele percebeu a cesta e disse, prestativo:
  – que atencioso de sua parte, milady. Deixe que eu levo isso.
  Ele imediatamente segurou a cesta e saímos. Descemos até a estrebaria, onde um cavalariço estava à nossa espera.
  – mi lady cavalga?-- Thomas perguntou, antes que chegássemos.
  – bem pouco, mi lorde.
  – não tem problema. Vamos devagar.
  O cavalariço tinha selado dois cavalos e tudo estava preparado. No cavalo de Thomas, havia uma tela e duas bolsas bem presas na sela.
  Com ajuda de Thomas, consegui montar sem grandes dificuldades. O problema maior eram as saias do vestido e o fato de que eu simplesmente não tinha habilidade em cavalgar sem uma perna de cada lado.
  Seguimos lentamente até que estivéssemos um pouco distante das instalações, onde ninguém poderia me ver. Uma neblina fina dominava a paisagem. O clima estava frio e, as vezes, fumaça saia da minha boca. Ainda era bem cedo.
  Thomas seguia um pouco adiante e eu aproveitei para colocar uma perna de cada lado, ajeitei as saias bem e consegui alcançá-lo.
  – bom, Amélia – ele comentou, olhando ao redor.-- William me mostrou onde fica esse lago, mas devo admitir que não sou bom com localização.
  – é uma pena, Thomas. Pois o máximo que eu conheço da propriedade, são os jardins.
  Ele se virou para mim, assustado. Tive que me controlar para não rir de sua expressão de susto.
  – eu sinto muito – lamentei, sentindo os trotes do animal – você escolheu a guia errada.
  – e agora que você me diz isto?-- ele falou, segurando a risada.
  – deveria ter me perguntado primeiro se eu sabia onde fica o tal lago. Antes de exigir minha companhia.
  Ele meneou a cabeça rindo. Seu sorriso era bonito e ele era uma pessoa divertida de se estar.
  – bom, já vi que vou ter que me esforçar para chegarmos ao destino…
  Eu não disse nada e continuamos a cavalgar a procura deste lago. Eu já tinha ouvido rumores sobre esse lago, entre os Bennet. Porém, as moças nunca tiveram interesse em ir até ali. E como eu era sua companhia, também nunca tinha ido. Me limitava a vida tediosa dentro da casa, cheia de outros afazeres.
  Conforme passeamos, ia vendo a bela paisagem da propriedade. Que, lentamente, ia sendo iluminada com os raios de sol que subiam no horizonte.
  As colinas esverdeadas, algumas plantações de cevada e trigo, podíamos até ver alguns trabalhadores chegando no campo.
  Thomas seguia ao meu lado, trotando em seu cavalo. Vez ou outra me olhava, como se quisesse me dizer alguma coisa. Eu podia sentir seu olhar sobre mim.
  – quer me perguntar algo?-- questionei, atraindo sua atenção.
  – ainda estou intrigado sobre suas origens.
  – o que sabe a respeito de minhas origens?
  – nada, e isso me intriga. Tem a classe e a graça de uma lady, porém trabalha feito uma condenada na casa dos Bennet. Qual a sua história?
  Eu pensei por um instante, precisava saber explicar para ele tudo que tinha acontecido em minha vida para que eu terminasse ali.
  – bom, Thomas… vai ser uma história meio longa.
  – acredito que vamos ter tempo – ele respondeu, olhando ao redor.
  – eu nasci em uma família de posses, uma família nobre, por assim dizer. Cresci em uma casa grande, cercada de luxos e criadas cuidando de tudo. Minha mãe era Lady Pevensie. Eu tive uma educação exemplar, para estar no meio da nobreza.-- comecei, e conforme eu falava, Thomas absorvia tudo – Então, meu pai caiu nos braços de uma amante, cujo propósito era acabar com ele e com tudo que ele possuía. Aos poucos, ele perdeu seus negócios e seu prestígio na sociedade. Minha mãe se afastou de seus aposentos e da vida pública, tamanha vergonha que ele trouxe para nós. Quando a tal mulher conseguiu arrancar tudo dele, inclusive nossa propriedade Pevensie House, ela partiu. Deixando apenas o rastro de destruição e a nossa vida despedaçada. Meu pai, caindo em si, percebendo a ruína que tinha acontecido, se suicidou.
  Thomas fez um semblante assustado, porém tentava disfarçar. Aquela era uma história um tanto pesada de se ouvir, porém era a dura verdade de minha vida cheia de desgraças.
  – Lady Pevensie então, viúva e com uma filha para criar, se tornou apenas Abigail, uma dama de companhia. Conseguiu trabalhar para algumas senhoras afortunadas, pois escondia seu sobrenome para evitar os maus olhares. Vivemos disso até que uma forte tuberculose a levasse, enfim.
  Então, Thomas não conseguiu disfarçar mais. E eu vi a solidariedade em seu olhar terno.
  – Eu realmente sinto muito, Amélia.
  – eu também. Lady Bennet era uma antiga amiga da minha mãe e me ofereceu abrigo e um trabalho, já que eu estava sozinha no mundo. Estou aqui desde os catorze anos.
  – oh, céus. Não imaginava que você passou por tudo isso.
  – tive que passar, não tive escolha. Foi difícil, mas aceitei que esse será meu destino, Thomas.
  – aceitou ser criada a vida toda?
  – sim. É melhor que mendigar.
  Ele ponderou, e cavalgamos por mais uns minutos em silêncio. Depois encontramos um pequeno bosque e seguimos por ele. Eu tinha sentido uma tristeza passar por mim, após abrir meu coração para Thomas. Lembrei que fazia muito tempo que ninguém se interessava pela minha história.
  Mais adiante, percebi o solo meio barrento. O tal lago estava próximo. Dentro de alguns minutos, pude vê-lo.
  Não era muito grande, mas era lindo. Águas limpas que refletiam a luz do sol. Um pequeno pier e alguns cisnes desfilavam em suas águas.
  Também muitas flores ao redor, enfeitadas por borboletas. Era uma paisagem linda de se ver. Me questionei porque nunca tinha vindo até ali.
  Devo ter ficado extasiada, pois Thomas interrompeu meu transe.
  – Amélia?
  – oh, desculpe – respondi, voltando a realidade.
  – vou procurar o lugar com a melhor vista. Quer me ajudar?
  – sim.
  Ele saiu andando devagar, atento ao solo e a visão que tinha da paisagem. Deu alguns passos até que decidiu.
  – venha aqui. Quero sua opinião.
  Eu me aproximei e ele me colocou em um lugar, segurando meus ombros. A leve pressão de seus dedos em mim me causou um arrepio. Ele chegou o rosto bem próximo e sussurrou, fazendo com que meu coração batesse um pouco mais rápido:
  – acredito que aqui teremos uma boa vista.
  Olhei a paisagem e realmente ficaria muito bom, a visão do lago e do pier, as flores ao redor e provavelmente o sol estaria ali ao entardecer.
  – ficará maravilhoso, Thomas.
  Ele sorriu e se afastou.
  – vamos montar a estrutura.
  Thomas foi até o cavalo e começou a descer sua bagagem. Primeiro a tela, depois as maletas. Fixamos o cavalete e ele suspirou, quando estava tudo pronto.
  – pretendo ter o esboço concluído até o por do sol – ele comentou, escolhendo um dos pincéis – o mais importante será as cores do entardecer.
  – eu posso te ajudar em alguma coisa?-- me prontifiquei.
  – veremos. Por ora, preciso de concentração.
  Eu imediatamente fiquei em silêncio. Observando cada movimento seu, cada escolha de pincel e de cores. Em pouco tempo, já podia ver um esboço surgindo. Ele segurava o pincel com habilidade, escolhia as tintas com atenção e era tudo muito natural para ele.

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