Cumberland's Hall

8 3 0
                                    

Dias atuais

  O caminho até Ipswich, em Suffolk, era relativamente curto, porém dentro de uma carruagem, todo percurso se torna entediante.
  As paisagens do caminho invocação as tristes memórias de minha trajetória até ali, tudo que eu tinha passado na minha vida veio a diante de meus olhos enquanto eu sacolejava naquela carruagem.
  Ao entardecer, passamos por grandes portões altos e majestosos, ostentando a letra C de forma elegante. Reconheci o brasão dos Cumberland, sentindo um leve aperto no peito com as memórias. Mesmo depois de tanto tempo, apenas a mera lembrança de seu sobrenome era capaz de fazer meu coração bater pesaroso.
  Grandes jardins e pinheiros enfeitavam a entrada. Conforme a carruagem adentrava a propriedade, eu ficava mais deslumbrada. Eu mal podia acreditar no que meus olhos viram.
  Condessa Clarisse se divertia, assistindo minha expressão de admiração.
  – quando eu disse que meu Albert tinha muito orgulho de Cumberland's Hall, querida Amélia. Era disso que eu falava – ela comentou, olhando a janela, com pesar– porém nada disso faz mais sentido para mim, na sua ausência.
  – é o lugar mais majestoso que eu já vi – confessei, admirando pela janela da carruagem.
  Seguimos mais alguns instantes e logo paramos em frente a grande mansão. Grandes janelas adornavam a fachada, escadaria para a porta de madeira que chamava atenção.
  Os criados se organizavam para a receber a Condessa, e alguns cavalariços se aproximaram também. A porta da carruagem foi aberta e eu não pude evitar um suspiro longo, ao contemplar de perto o esplendor de Cumberland's Hall. O dia estava nublado, mas nem isso tirou dela a sua glória.
  Descemos da carruagem.
  A Condessa me olhou e olhou para os criados que estavam enfileirados e bem trajados, à sua espera.
  – boa tarde. – ela cumprimentou, recebendo reverências como resposta – esta é Amélia Pevensie, a nova governanta de Cumberland's Hall. Mostrem a ela como tudo funciona.
  Antes que lhe respondesse, Lady Clarisse Cumberland estava subindo suas escadas para dentro, acompanhada de uma criada.
  Respirei fundo, dando uma última analisada na fachada de onde seria o meu lar, pelos próximos anos. Me deu um frio na barriga imaginando isso. Uma das criadas se aproximou, um pouco envergonhada.
  – Amélia Pevensie, não é?-- ela perguntou, sorrindo.
  – sim, exatamente.
  – eu sou Maeve Jones. Trabalho aqui já faz alguns anos. Venha, eu te apresento o lugar.
  Eu a segui pela porta dos criados, conhecendo as cozinheiras, cavalariços, guardas e todo tipo de criadagem que havia ali. Fiquei admirada pelo respeito que havia entre eles, sempre educados e gentis. Eu temia ser mal recebida em meu novo lar, mas parecia que isso não era um problema.
  Como era uma grande propriedade, era natural a variedade de cargos. Cada qual em sua função.
  Porém, com uma breve olhada, eu podia perceber alguns desvios de função e várias coisas fora da ordem, do que se esperava de uma mansão do porte de Cumberland's Hall.
  Me apresentaram meu quarto, era um bom aposento e tinha tudo que eu precisava. Tomei um breve banho e me vesti para o jantar.
  Os uniformes dali eram magníficos, tão elegantes quanto tudo ao redor. Penteados e calçados padronizados.
  Me senti um pouco estranha usando aquele vestido de cor escura, dessa vez sem o avental branco. Também usava uma touca na cabeça, indicando que eu seria a governanta do lugar.
  Minhas vestes me distinguiam das demais criadas. Eu não sabia como meus cabelos ficavam soltos, simplesmente porque não me lembrava sequer da última vez que pude soltá-los.

  Aos poucos, eu tinha me acostumado a viver com o mínimo de vaidade. Mesmo quando acompanhava Lady Emma Fersnby aos eventos, todos percebiam que eu era uma criada, pois eu me vestia diferente das demais moças.
  Depois de estar pronta, fui me encontrar com a criadagem na cozinha. A maioria dos funcionários estavam reunidos para jantar juntos, pois a Condessa já havia sido servida e tinha se recolhido mais cedo
  – Boa noite, pessoal – cumprimentei, gentilmente, atraindo a atenção de todos.
  – boa noite, Amélia. O que achou de seus aposentos?-- perguntou Maeve, apontando um lugar ao seu lado para eu me sentar.
  – excepcionais. Obrigada por me apresentar.
  – disponha. Aqui estão todos que você já conheceu mais cedo – ela apontou ao redor e alguns acenaram com a cabeça, cumprimentando.
  – sim, obrigada. Amanhã vamos iniciar os serviços. Precisamos reorganizar tudo por aqui.
  – sim, precisamos – respondeu o mordomo, acredito que seu nome era Boyle.-- desde a doença que levou o Conde Cumberland, tudo por aqui ficou meio abandonado.
  – que mal se sucedeu ao Conde?-- perguntei, sentando-me ao lado de Maeve.
  – uma bronquite aguda. Ele tossiu por semanas, até que ficou com muita falta de ar. Todos nós presenciamos o quanto foi sofrido.-- ela respondeu, entristecida.
  – Conde Cumberland era o melhor entre os senhores. Todos nós fomos bem tratados por ele. – comentou uma cozinheira Polly, baixinha e rechonchuda – eu mesma estou aqui há dez anos e nunca fui desrespeitada.
  – exatamente, Polly – concordou Boyle, com pesar – Conde Cumberland deixou um vazio irreparável.
  – eu sinto muito por sua perda – lamentei, percebendo que o velho conde era muito amado por seus criados.
  – todos nós sentimos, Amélia. Principalmente a Condessa – respondeu Maeve, ainda pesarosa – ela ficou reclusa dois meses, em prantos. Teve que sair para ir contratar você. Precisa colocar tudo em ordem para a chegada do novo Conde.
  – ela está de coração partido – comentou Polly, um tanto abatida – mas também, seu marido se foi. Como se esperava que ela estivesse?
  Foi uma pergunta retórica e todos ficaram em silêncio, comendo, um pouco tristes. A tristeza reinava naquela casa.
E eu conhecia bem a dor que afligia a Condessa. Ela ainda teve a honra de passar décadas ao lado de seu amado, e nem isso me foi permitido.
  Engoli em seco, me esforçando para comer.
  Não demorou muito até que todos se recolhessem, com exceção dos guardas do turno da noite.
  Meu quarto era confortável e eu consegui adormecer rapidamente. Me controlei para não iniciar minha jornada ali chorando, mas devo confessar que desejei chorar muito.
  Chorar por mim e também pela Condessa.
  Mas na madrugada seguinte, acordei sem demora. Levantei-me e fui rapidamente acompanhar a rotina do lugar, para assim, fazer minhas observações.

  De maneira geral, havia uma certa ordem em tudo que faziam, porém algumas coisas processos de organizar os aposentos poderiam ser otimizados. De imediato, me dediquei a deixar tudo mais funcional.
  A criadagem era bem satisfeita com a Condessa, então foi fácil implantar as melhorias. Todos eram bem dóceis e compreendiam o que eu sugeria. Houve pouca resistência da parte deles, pois a maioria faria de tudo para agradar sua senhora.
  A Condessa se recolheu e ficou reclusa por vários dias. Andy, sua criada particular, só a via quando levava a bandeja com sua comida. Ainda assim, ela mal comia.
  Todos na mansão sentiam a dor dela, era uma tristeza sem tamanho. Pelo que me contavam, Lady Clarisse e o conde Albert eram inseparáveis, apesar de não terem nenhum filho, o relacionamento deles parecia muito sólido.

  Conforme os dias foram passando, tudo se ajeitava na ordem da mansão, exceto pela ausência da Condessa e a não chegada do novo conde.
  Os burburinhos pela mansão foram aumentando, pois sempre que íamos ao mercado, as pessoas questionavam sobre o novo senhor de Cumberland's Hall.
  E ninguém simplesmente sabia nada sobre isso, nenhum criado e nem a própria Condessa tinha informações sobre o tal sucessor.
  Cada vez que saímos da propriedade, sempre encontrávamos vários curiosos sobre a situação da Condessa, que estava reclusa, e quando o novo conde chegaria. Era uma situação desagradável, pois nada dependia de nenhum dos criados, ninguém sabia nada. Ninguém tinha nenhuma informação sobre nada e mesmo se tivesse, ninguém contaria aos criados.
  E o fato de não saber de nada acabou gerando uma ansiedade sobre todos em Cumberland's Hall. Alguns tentavam a todo custo descobrir o que estava acontecendo, mas a Condessa parecia saber tanto quanto nós. Ela sequer conhecia o novo Conde.

  Sempre que tínhamos um tempo, após concluir as tarefas, nós reunimos para conversar e o assunto sempre terminava nisso.
  – talvez ele não queira assumir – comentou Maeve, olhando a chuva calma que caia lá fora.
  – não seja ridícula, Maeve…– corrigiu Boyle, um tanto mau humorado– qual homem, em sã consciência, não iria querer assumir o Condado e todas as propriedades dos Cumberland?
  – eu sei lá… já faz quatro meses, desde a morte do Conde Albert, e ninguém sabe onde o herdeiro dele está – rebateu Maeve, se irritando – a Condessa está minguando nos aposentos dela e não tem um familiar sequer para dar apoio a ela.
  – ela deixou claro que Cumberland's Hall está fechada para visitas – comentou Ted, um dos criados – os guardas estão proibidos de liberar a entrada de qualquer um que seja.
  – oh, céus…– Boyle exclamou, pesaroso – onde está o nosso senhor?
  – você disse que nenhum homem, em sã consciência, não aceitaria assumir Cumberland's Hall – Alfred, outro criado, começou, sério – talvez não seja um homem são.
  – do que está falando, Alfred?-- questionei, percebendo o clima pesado que tomou conta dali.
  – qualquer homem são, como disse nosso amigo Boyle, correria imediatamente para cá, ao saber que o tio podre de rico estava a beira da morte. Ou pelo menos no seu funeral. Mas o conde Albert não recebeu quase visita alguma em seu leito de morte. E em seu funeral, não havia ninguém que tivesse notícias do tal sucessor. Talvez seja porque não é uma pessoa muito amigável.
  Um silêncio doloroso inundou o ambiente e todos nós, sem exceção, refletimos sobre o que Alfred tinha dito. Talvez ele tivesse razão.
  E a partir daquele momento, ao invés de ansiedade, todos os criados sentiram uma onda de desconfiança tomar conta de si. Inclusive eu.

Entre As Memórias E Os Pincéis Onde histórias criam vida. Descubra agora