Comitê de Privilégios

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  Na manhã seguinte, após meu desjejum, estava na biblioteca, quando Lady Clarisse veio até mim. Ela não tinha sido vista desde nossa conversa no dia anterior.
  Não pude evitar a surpresa.
  Ela estava com os cabelos mal arrumados, pela falta de uma camareira especializada. Fechou a porta atrás de si e veio até mim, um tanto ansiosa.
  -- bom dia, Amélia.-- ela murmurou, se sentando perto de mim.
  -- bom dia, minha tia. Espero que esteja tudo bem. Não a vejo desde ontem.
  -- estou bem sim. Obrigada. Porém, olhe bem para mim. Francis não é muito boa com cabelos. Estaria abusando de sua gentileza se pedisse para ajeitar para mim?-- ela comentou, ainda com o tom de voz baixo.-- de novo.
  Eu dei um risinho.
  -- eu faria com o maior prazer.
  Ela abriu um sorriso de gratidão.
  Subimos para seus aposentos e, em instantes, eu estava penteando seus cabelos novamente. Nós duas, em completo silêncio. Até que ela abriu a boca.
  -- como ele está?
  -- desculpe, mas ele quem?-- eu fiquei confusa, pois estava absorta nos meus pensamentos enquanto pensava no que fazer em suas madeixas.
  -- Fitzwilliam Moore.
  Então a encarei pelo reflexo, tentando controlar as expressões do meu rosto.
  -- bem... Ele está bem.-- comecei, sem saber o que dizer.
  -- por favor, não me faça implorar -- ela pediu e eu vi a súplica em seu olhar.
  -- é um homem deveras bonito. Usa uma barba elegante. Bem vestido, apesar de que usava um avental... Muito gentil. Um bom homem, minha tia.
  -- ele sempre ficou muito bonito de barba.-- ela comentou, sorrindo timidamente.
  -- vai procurar por ele?-- perguntei, sem pensar muito no que ia dizer, vi seus olhos espantados no espelho e fiquei constrangida, talvez não devesse ter perguntado -- quero dizer, ele te mandou aquele ramalhete elegante... Pensei que fosse agradecer a ele...
  Lady Clarisse ficou em silêncio, pensativa. Baixou o olhar para suas mãos. Ficou assim até que eu terminasse o penteado.
  -- terminei -- concluí, com um sorriso orgulhoso.
  Ela, então, levantou o olhar para se admirar no reflexo. Sorriu para mim.
  -- ainda é cedo para que eu abandone essas roupas de luto?
  Abri a boca para responder, mas ela me interrompeu.
  -- acredito que preto e cinza não ficam bem em mim. Não combinam comigo.-- ela falou, como se justificasse.
  -- bem, eu imagino que não fique bem, já que está incomodada. Sempre que a vejo, está com essas cores. Acredito que precise de um pouco de cor.
  Ela se levantou, alisando o vestido, cinza escuro. Era deveras elegante, bem bordado, com ótimo caimento. Mas era uma cor mórbida. Cor de viúva enlutada. Uma viúva que parecia querer se libertar desse luto.
  -- vou experimentar meus outros vestidos... Talvez devêssemos ir a modista.-- ela comentou, olhando para si mesma.
  -- estou a sua disposição, caso queira uma companhia.
  Ela me olhou com ternura.
  -- obrigado, Amélia. De coração.
  Eu sorri de volta, sem palavras.
  Caminhei em direção a porta, e ela me chamou.
  -- Amélia, querida... Acredita mesmo que eu deveria ir vê-lo?
  -- bem, ele te mandou aqueles narcisos -- comentei, apontando para o vaso que estava ao lado de sua escrivaninha -- deveria, pelo menos, agradecê-lo.
  -- tem razão. Mas faz tanto tempo... Tantos anos...
  -- talvez devesse tentar. Pelo que me contou, Fitzwilliam Moore nunca deixou Cumberland's Hall. Ele certamente te via, por aqui, sem poder ir até você.
  -- conforme os dias se passaram, eu imaginei que ele tinha ido embora. Nunca mais fui a estufa, mas ele sempre cuidava do jardim. Eu deveria tê-lo visto pelo menos!
  -- sim... Por isso, deveria falar com ele.
  Ela concordou com a cabeça.
  -- nenhum narciso amarelo em toda Cumberland's Hall...-- lamentou, pensativa -- quando Albert e eu íamos a Londres, eu podia ver os narcisos por todo lado. Era uma lembrança dolorosa, mas necessária. Mas aqui, nenhuma única flor.
  -- Albert proibiu os narcisos amarelos na propriedade, Lady Clarisse. Ninguém podia plantar ou trazer um único narciso amarelo, era proibido. Quando entrei em casa, ontem, todos me olhavam estranho, pois ninguém trazia um narciso nesta propriedade há anos.
  Sua expressão foi de amargura. Ela maneou a cabeça, com lágrimas nos olhos. Suspirou fundo e sua voz saiu num lamento.
  -- eu fiquei ao lado dele a vida toda, Amélia... Cuidei dele em sua enfermidade. Estava do seu lado, no leito, quando ele partiu. E Albert proibiu a minha flor favorita na minha própria casa.
  Foi inevitável me emocionar. Senti meu coração dolorido perante sua angústia. Eu compreendi seu sofrimento.
  -- eu obedeci, quando ele ordenou que eu me afastasse da estufa e do jardineiro! Eu sacrifiquei o provável amor da minha vida, por um marido que nunca teve consideração por mim...-- ela soluçou, amargurada.
  Caminhei ao seu encontro, para conforta-la. Alisei seus braços e ela suspirou, tentando se controlar.
  -- se acalme, por favor... Tudo isso passou...
  -- sim, eu sei. Mas como vou procurar por Fitzwilliam depois de quase quarenta anos? Como direi a ele que escolhi meu marido infiel? Como?-- ela me questionou, cheia de rancor e dor.
  -- vá até lá e conte a ele. Lady Clarisse, ele esteve aqui esse tempo todo. Provavelmente estava te esperando.
  Seu olhar se iluminou. Ela enxugou as lágrimas do rosto, suspirando calmamente.
  -- vamos até lá. Agora.-- sua voz saiu decidida, como um ordem para mim.
  -- como assim? Vamos?
  -- você irá comigo.
  -- eu?-- me espantei com sua resposta sem o mínimo de hesitação.
  Ela procurou seu chapéu e suas luvas.
  -- eu não irei a seu reencontro!
  -- agora mesmo estava se colocando a disposição.
  -- eu quis dizer, companhia para ir a modista. Não te acompanhar para reencontrar seu amado.
  -- você deixou aberto a interpretações. Agora irá comigo.-- ela colocou o chapéu e saiu caminhando, sem esperar uma resposta minha.
  Eu me poupei de uma discussão, visto que conhecia Lady Clarisse o suficiente para compreender que seria inútil. Ela me levaria consigo e ponto.
  Descemos as escadas apressadamente.
  E Boyle veio ao meu encontro.
  -- Vossa Graça -- ele reverenciou -- Vossa Graça, o Conde, chama por você no escritório.
  Eu suspirei de alívio.
  -- obrigada, Boyle.
  Lady Clarisse tinha parado sua caminhada apressada para me encarar.
  -- Thomas está me chamando. Infelizmente não poderei ir -- anunciei voltando a subir as escadas.
  Ela não me respondeu.

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