capítulo 2

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E quando a gente ama alguém de verdade, a gente cuida.As vezes deixamos de cuidar da nossa própria vida,para se dedicar a alguém...

A noite já havia caído e tio Rick ainda não havia voltado da cidade,me falou que só ia fechar o armazém e que não ia demorar.
Não levava meia hora da aldeia a cidade,mas tio Rick já estava há muito tempo por lá.
Tivemos uma longa conversa naquele dia,contei a ele tudo sobre a Espanha,quase tudo...fiz um pequeno resumo.Contei sobre o colégio onde estudei e me formei professora,Contei sobre meus alunos que ficaram tristes quando eu disse que precisava ficar uns tempos fora.
Recebi vários presentes dos meus pequenos, cartas,flores,até bonecas de pano.Passei os dias da viagem olhando os presentes que eu recebi.
Até hoje a saudade é grande.Tenho vontade de voltar à Espanha,sinto falta dos meus alunos.Às vezes sinto falta da minha vida simples sem ser notada por ninguém,deixar meus filhos decidirem seus próprios destinos...

Eu estava acabando de preparar o ensopado de legumes quando ouvi o barulho da porta abrindo e fechando em seguida,caminhei em passos largos até a sala e vi tio Rick tirando seu palitó meio acinzentado.

—Tio,o senhor demorou.
Coloquei as mãos na cintura e fiquei olhando para ele.

—Desculpa,filha.Fiquei conversando com uns amigos.
Seu hálito de vinho estava muito forte. Mas que tolice,não estava bem de saúde e ainda andava bebendo vinho. Eu tinha mesmo que afastá-lo daquele lugar imediatamente.

—Conversando e bebendo né?
Ele me olhou antes de sentar na cadeira de balanço.

—Foi só um pouco.

—Um pouco tio? Eu vim para Londres por causa do senhor.Porque está doente. Não sabe o que tem,não pode ficar bebendo,mesmo que seja só um pouco.
Que no caso não era.Ele podia incendiar uma floresta com o bafo de álcool.
—Vou preparar um banho quente para o senhor.
Seus olhos mirrados  apontaram para mim.

—Estou feliz que esteja aqui.Fiquei todos esses anos sozinho,nessa casa, sem ninguém para conversar.
Pobre tio Rick.Meu coração apertou com seu desabafo.

—Agora estou aqui tio.
Me aproximei dele e peguei em sua mão cansada e enrugada.

—Mas logo vai embora.E eu vou voltar a ficar só.

—Eu vim para te buscar,tio.O senhor vai viver comigo na Espanha. Nunca mais vai ficar sozinho.
Ele olhou para a lareira em chamas.

—Meu lugar é aqui,Alana.Minha vida está aqui.Se eu sair daqui,uma parte de mim vai morrendo aos poucos.E eu não conseguiria ser feliz, porque meu coração vai estar aqui,sempre aqui.

Eu não quis dizer mais nada,não era o momento de termos aquela conversa já que sua mente estava totalmente alterada pelo álcool.
Inclinei o corpo e tirei sua botina.

—Vou preparar seu banho.Fiz um ensopado bem forte. Depois de se banhar o senhor vai comer.

—Estou sem apetite.

—Mas o senhor precisa comer.Mesmo que seja só um pouco.
Ele voltou a me olhar e sorriu meio de canto.

—Nem acredito que você é aquela menina que foi embora há dez anos.
Eu sorri.

Toda a cena me veio a mente,eu tinha doze anos de idade.Em cinco dias eu havia perdido meus pais.Minha mãe foi primeiro,quatro dias depois foi meu pai.
Num piscar de olhos eu havia perdido as duas pessoas mais importantes para mim.Eu fiquei arrasada,não fazia ideia de como reagir toda aquela situação.
Tudo ainda está na minha memória,como se fosse hoje...

A gente tinha acabado de enterrar meu pai,lembro que tio Rick não me deixou entrar em casa por causa da contagiosa peste,fiquei lá fora com a senhora Lovet,uma amiga da família. Eu não estava entendendo o que estava acontecendo.Vi tio Rick sair com uma bagagem nas mãos. Como assim? Para onde a gente ia?
Toda a cidade e ao redor estava sofrendo com a peste.
Permanecemos em silêncio até a gente chegar no porto de Londres.Eu nunca havia visto um navio de tão perto.Só uma vez meu pai me levou para ver,mas ficamos em uma certa distância, mas eu fiquei muito contente,pude ver uma boa parte do navio.

—Alana,a senhora Lovet vai te levar para um lugar seguro.

—O senhor não vem,tio?

—O tio não pode ir agora. Mas eu prometo que assim que der,eu vou me encontrar com você.
Uma promessa não cumprida.

—Alana!
Brian veio correndo em minha direção, parou diante de mim,sua respiração estava ofegante.
—Ainda bem que cheguei a tempo.

—Brian.Como você vai ficar? Você também precisa ir.

—Eu vou ficar bem,Alana.Quero que se lembre sempre de mim.
Ele tirou o medalhão que havia ganhado quando bebê pelo seu pai,antes de o abandonar com a mãe.
Estendeu a mim.Arregalei os olhos sem acreditar.
—Quero que fique com você.

—Brian,foi um presente...do seu pai.

—Eu sei.Ele deixou para mim como prova de que um dia voltaria.Mas...até hoje...eu quero que fique com você.Como prova de que um dia você vai voltar.

—Eu não posso aceitar.Sei que é muito valioso...

—Então eu te empresto.Quando voltar,você me devolve.
Disse enquanto prendia em meu pescoço.
—Vou sentir saudades,Alana.

—Eu também vou,Brian.Vou te escrever sempre.

—Eu também.
Nos abraçamos por uns longos segundos.Até o navio apitar nos alertando que estava na hora de partir.
Fiquei um bom tempo olhando tio Rick e Brian acenando enquanto eu navegava para um destino que não fazia idéia onde era...

Sem me dar conta,eu estava segurando o medalhão pendurado no pescoço,eu nunca havia tirado.
E eu estava de volta,mas Brian não estava lá...

O ronco do tio Rick me despertou, ele havia dormido sentado na cadeira,levantei e fiquei observando aquela cena.Ele estava bêbado, mas eu não podia deixar ele dormindo ali,sem banho e sem comer.
Chamei umas dez vezes,o sacudi,até ele acordar assustado e me olhando como se estivesse vendo um fantasma.
Eu só conseguia rir.
Mas eu fiz com que tomasse um banho para tirar o fedor de gambá e comesse um pouco.
Só então,o levei para seu aposento e ele pôde dormir aconchegado.

A favorita do reiOnde histórias criam vida. Descubra agora