24. Eu sou tão bobo...

85 23 15
                                    

Passei pela porta desviando o meu olhar de seu rosto. Coloquei as minhas coisas na mesa no canto da sala e respirei fundo pensando no que diria primeiro. Nunca vi alguém que se mostrava tão forte o tempo todo, tão abatido como agora.

Mas se tem uma coisa que eu venho aprendendo é que: quando alguém muito tenta esconder a dor, um dia ela escapa e acaba mostrando tudo de si.

Não demonstrar é apenas acumulação de sentimentos. E quando são sentimentos ruins, explodem de maneira muito intensa perdendo até mesmo o controle das emoções.

— Que música estava tocando? — Foi a primeira coisa que consegui dizer. Não podia iniciar o assunto assim sem mais nem menos.

Ele me encarou com um olhar diferente. Não era ruim, parecia querer entender o que se passava pela minha mente.

— Era Jesu Joy of Man's Desiring. — Declarou voltando a encarar o teclado. — Minha mãe tocava pra mim quando eu era menor. — Seus dedos pressionaram algumas teclas, ele parecia imerso nas memórias que uma única música podia trazer.. — Foi uma das primeiras músicas que eu aprendi no teclado, e me lembro como se fosse ontem o quanto eu era horrível tocando. — Sorriu, tocando um pequeno trecho da melodia, descontraído.

— E foi ela que te ensinou? — Não sabia ao certo se aquela era uma pergunta muito agradável, mas talvez ele precisasse de alguém para dizer tudo aquilo que estava dentro dele, aprisionado.

— Na verdade, não. — O observei atentamente enquanto me aproximava do grande piano. — Minha mãe me ensinou a tocar o piano, mas nunca quis me ensinar a música. Ela disse que eu devia aprender sozinho, e quando eu aprendesse, estaria pronto. — De repente ele mudou. De imerso nas memórias, agora estava tentando afasta-las. — Ela nunca me disse para o que eu estaria pronto. Morreu e talvez eu nunca irei descobrir isso. Melhor, "talvez" não é a palavra ideal. Eu nunca, em hipótese alguma, jamais irei saber se minha mãe me considerava pronto para seja lá o que significava isso. — Se levantou da banqueta tentando disfarçar o quanto aquelas palavras o feriam brutalmente.

As palavras são absurdas porque são só um monte de letras que quando estão juntas, dependendo do contexto em que se encontram, podem construir ou acabar com uma vida. Aquelas palavras saíram de sua boca. Palavras muito mal construídas e que feriram a si próprio.

— Quais palavras de consolo usar nessas horas? — Perguntei a mim mesma enquanto andava envolta do piano, me aproximando dele. — Acho que não existem palavras. Sabe, a língua portuguesa é extensa demais. Mas eu acho que não existem palavras, que quando unidas em uma frase, seja capaz de consolar alguém que perdeu uma pessoa querida. — Quando cheguei perto o suficiente para toca-lo, ele observou atentamente cada palavra que saía da minha boca. — Por mais que saibamos que a morte é um evento canônico na vida de qualquer um, nunca queremos ser esse "qualquer um" e nem queremos que as pessoas ao nosso redor sejam esse "qualquer um". — Envolvi os meus braços ao redor de sua cintura e encostei a minha cabeça em seu peito. Senti o quão surpreso o menino ficou, mas mesmo assim, retribuiu o abraço. — Mike, não prenda essa dor aí dentro. Você não se torna fraco se demonstra ela. Não permita que isso venha te corroer por dentro. — Senti a ponta de seus dedos acariciando os fios do meu cabelo. Ele estava quieto, respirando de maneira eufórica, até que finalmente o ouvi chorar. Era um choro que estava aprisionado há muito tempo. Um choro doloroso e que rasgava o peito.

Quando o menino se afastou do abraço, ele me encarou e algumas lágrimas ainda escapavam de seus olhos. Ele parecia querer falar, gritar tudo aquilo que sente. Mas para alguém que nunca falou sobre os seus sentimentos abertamente, era uma missão impossível.

— Como ela era? — Eu não sabia muito bem se o que eu estava fazendo ajudaria ele a falar, ou irritaria ele em um nível que jamais o vi antes. Mike virou o rosto como se não tivesse gostado muito da pergunta.
Mas mesmo não gostando, ele começou a falar.

— Minha mãe era incrível. — Aquilo pareceu bem difícil de dizer. Ele batia um dos pés no chão, parecendo pensar no que dizer. — Ela... Cantava com um anjo, falava como um anjo e talvez por ser um anjo, Deus a queria de volta no céu. — Abriu um sorriso fraco. — Ela transmitia uma luz única que o lugar era iluminado assim que ela passava. Sua risada era mágica que não tinha como não rir juntamente com ela. — Limpou as lágrimas que ameaçavam cair, antes mesmo que caíssem. — Minha mãe me fez amar a música; amar meu pai que por mais terrível que fosse na época, ela me fez ama-lo; amar o mundo pelas pequenas coisas; ser grato por tudo e o principal, jamais deixar meus sonhos de lado. Eu também era um pedaço de luz quando minha mãe ainda estava aqui. — O seu fraco sorriso foi se desmanchando aos poucos, e eu me aproximei para ouvir mais. — Quando ela foi embora, percebi que a luz só estava nela e eu só tinha essa luz porque vivia com ela. Foi embora e levou com si toda a luz que transmitia, toda felicidade que carregava. Levou com si, toda melodia que me restava. — Toquei em suas mãos quando de repente ele levou-as ao rosto e começou a chorar descontroladamente. — Eu sou um idiota porque o seu último pedido foi para que eu seguisse em frente. Mas como esquecer a única pessoa que verdadeiramente se importava com você? Como esquecer? Eu sou tão idiota que não fui nem capaz de ler a carta que ela deixou para mim! Eu sou tão bobo que joguei tudo que me lembrava dela fora... Cada partitura, composições nossas, até o piano. Eu sou tão bobo... — E dizendo a última palavra, se desabou em lágrimas.

— O trágico do passado é que ele é irrevogável. — Disse eu, sentindo o choro se aproximar.

A Maior Conquista: O AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora