4 - Sede

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Eu imaginei que teria uma reação alérgica e que talvez acabasse morrendo, mas não aconteceu. De início achei que a fita que ele usou não tinha látex na composição, mas parece que não era isso. Já que eu não tinha mais o que fazer, só podia dormir ou ler os papéis que ele me deu pra me distrair da fome e foi assim que descobri que gente como eu era curado de qualquer problema de saúde que tínhamos antes da primeira morte. Mesmo se eu tivesse câncer, não teria mais, e provavelmente não teria mais alergias. Minhas estrias, e até a minha cicatriz da apendicite, haviam sumido. As cicatrizes que eu tinha nas costas provavelmente também.

Perdi a noção do tempo, já que ali não entrava nenhuma luz natural, mas certamente haviam se passado dias pois eu logo fiquei fraco o suficiente pra me cansar com qualquer movimento que tentasse fazer. Por sorte - ou não - aquele cara não apareceu por um tempo. Às vezes alguém ligava no celular e ele logo saía, mas nunca ficava fora durante muito tempo. Exceto desta vez, parecia estar levando horas, talvez um dia inteiro... Apesar de que ele havia terminado alguns projetos, então deve ter ido tentar vender. Parece que era assim que ele se sustentava. Ele havia deixado um balde pra eu fazer minhas necessidades mas após um tempo minha uretra começou a doer, então eu tentava segurar o máximo que podia. Era isso, ele ia me matar por desidratação. Acho que eu não poderia voltar à vida depois disso, né? Como eu iria me reidratar?

Eu considerei beber minha própria urina quando passei a não conseguir mais ler, já que meus olhos e minha cabeça doíam demais. Até mesmo dei um jeito de tirar a fita e a cueca da minha cara usando os dedos dos pés, mas toda vez que eu me aproximava do balde ficava com medo de vomitar e acabar me desidratando mais ainda. Então eu dormi, poupando minha energia, mas o sentimento de abandono e ódio tomou conta de mim, me fazendo incapaz de sonhar.

Um circo, é...? Queria que fosse assim, por muito tempo eu usei a ironia como mecanismo de defesa. Faz quase um ano que eu emagreci, mas passei a maior parte da minha vida sendo gordo. Quando você é um órfão gay e gordo, que é visto como "lixo branco" e não tem os mesmos privilégios de outras pessoas brancas só porque você vem de origem pobre e "desaculturada", essa era a melhor forma de fazer as pessoas pararem de te encher o saco, de te adorar ou querer manter distância. Eu achei que pudesse irritá-lo o suficiente pra que ele decidisse me soltar, mas isso não ia funcionar. Mas então, o que eu deveria fazer?

Eu não sabia como agir, e nem conseguia pensar nisso agora pois minha mente estava ficando tão confusa... Comecei a ter flashbacks da minha infância sem nenhuma ordem ou importância, apenas imagens aleatórias e distorcidas do orfanato onde eu cresci. O pátio, de onde era possível ver a cruz no telhado, apontando para o céu. O refeitório, onde costumávamos rezar antes da ceia. O dormitório, onde sobre cada cama havia uma imagem de Jesus. A capela, com a enorme representação Dele crucificado atrás do altar... A porta à esquerda da imagem. O que havia lá dentro? Me fazia querer chorar, mas meus olhos estavam secos demais.

— Por quê, Deus? Por que me abandonou? – Perguntei, em um sussurro delirante. Eu nem acreditava mais em Deus, não desde que escapei da lavagem cerebral da igreja.

— Você me abandonou primeiro. – Mas que porra... Quem era ele pra dizer isso? Ele, que nunca esteve lá por mim. – Por isso, você deve ser punido. – Ouvi um estalo e senti uma chicotada atingir minhas costas. Gritei de dor.

Acordei com água sendo jogada em mim, estava tão fria sobre minha pele ressecada e sensível que parecia penetrar minha carne. Abri minha boca, tentando sorver toda e qualquer gota que atingisse meus lábios. Aquilo era um alívio. Então olhei pra pessoa que me molhava, aquele era... Jesus? Não. Era aquele cara, ele apenas lembrava a Sua imagem. Eu não conseguia entender o motivo dele estar fazendo aquilo, não era mais fácil apenas me deixar morrer? Ou ele queria me fazer sofrer por mais tempo?

— Você tá fedendo. – Disse, e usou um esfregão pra me limpar. Fez isso com tanta indelicadeza que meu corpo doeu, e eu grunhi. Então, ele parou. Por quê? – Aliás, isso não vai funcionar. – Se virou e pegou uma garrafa d'água, levando-a à minha boca. Bebi, aliviado. Mesmo que estivesse envenenada, era um alívio finalmente acabar com a sede. Mas por que ele estava fazendo aquilo? – Publicaram um novo artigo, se eu tentar te matar de fome ou desidratação você só vai hibernar. Assim que seu corpo for molhado ou entrar em contato com insetos ou qualquer tipo de animal, irá absorvê-los e voltar à vida. Então, por enquanto, não tem como eu me livrar de você.

Mesmo querendo uma explicação, eu mal prestei atenção ao que ele disse. Assim que a sede diminuiu, comecei a ouvir sons estranhos vindo de seu pulso, algo como a batida de um coração... É, eu acho que era isso mesmo. Era o som do sangue correndo pelas suas veias, e aquilo tava me deixando maluco. Eu não queria mais água, queria aquilo. Queria fincar meus dentes em sua pele e arrancar sua carne, abrir seu estômago e devorar suas entranhas.

Era doloroso. Minha razão e minha barriga estavam lutando entre si, eu só não comecei a suar pois não estava suficientemente hidratado para que a água chegasse aos meus poros mas eu salivava e meus olhos estavam arregalados, fixos nas veias saltadas que pareciam vinho correndo sob a pele alva. Seria tão delicioso quanto? Provavelmente não. Mas eu queria. Eu precisava daquilo, tanto que não consegui mais resistir e aproximei minha boca de seu braço. Ao tocar meus lábios, meu coração acelerou. Senti-lo pulsar contra minha língua e o sabor de sua pele preencheu minhas papilas. Meus dentes tocaram seu pulso e eu comecei a fechar minha boca. Eu ia mordê-lo. Eu estava pronto para comê-lo.

Mas ele puxou o braço.

— Eita porra, você tentou me morder?! – O encarei, mas não fui capaz de emitir nenhum som além de um grunhido.

Minha razão gritava na minha cabeça, que ele era uma pessoa e que eu precisava dele tanto para sobreviver quanto para finalmente morrer, mas a voz do meu estômago falava mais alto. Me arrastei até ele, que continuou se distanciando e logo a corrente não permitiu que eu avançasse. Ainda assim, continuei tentando. Até mordi as correntes, mesmo sendo inútil. De repente, ouvi sua risada.

— Você tá com tanta fome assim? – É claro, seu desgraçado, e é culpa sua por me deixar sem comer. – Agora você parece mesmo um zumbi... – Continuou rindo, e mesmo minha parte racional queria arrancar a cara dele. O que aquilo tinha de tão engraçado? – Ok, acho que consigo trazer algo pra você comer essa noite.

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