43 - Carta

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Não posso dizer que não estava com medo de voltar, as lembranças atreladas àquele lugar me amedrontavam. Aquelas que me assombraram por todos esses anos, mesmo que eu tentasse esquecê-las... Mas fiquei surpreso ao descobrir que a minha reação ao lugar onde cresci não foi a que eu esperava. Senti uma nostalgia, claro, mas também me senti... Seguro. Assim como quando cheguei lá pela primeira vez, quando criança. O único lugar que me assustava agora, assim como no passado, era a capela, mas eu decidi não chegar perto dela. Não era hora de lidar com aquilo.

Eu nunca tive um quarto só meu durante a infância, costumava dormir junto com os outros meninos no dormitório principal, mas agora ficaria em um quarto vago no convento, apenas até eu conseguir encontrar um lugar legal pra eu poder morar sozinho. Mas, mesmo que as pessoas do orfanato tenham me dado abrigo e me ajudado a conseguir um emprego, logo percebi que não conseguiria viver uma vida normal.

Tentei fazer atividades comuns como ir ao mercado, fazer uma caminhada no parque e coisas do tipo, eu estava sendo medicado e indo à terapia, mas ainda tinha ataques de pânico. Ainda desejava comer carne humana e tinha alucinações, e com isso cheguei ao ponto de começar a ver o rosto do Owen em todo lugar.

Eu não queria que ninguém se preocupasse comigo, então decidi me internar. Por conta disso, não pude ir no julgamento do Owen, mas o Edwin me representou. Eu disse a ele pra fazer o que quisesse. Talvez fosse melhor assim... Mais tarde, descobri que Owen também havia sido responsabilizado pelo assassinato de Jeff, e inevitavelmente pegou a pena de morte, mas a data de sua execução levaria anos para ser decidida.

Após um ano hospitalizado, seu nome não me assustava mais. Tudo pareceu um sonho... Na verdade, um pesadelo, mas eu acordei dele. A única coisa que eu tinha pra me lembrar do que aconteceu era a doença que ele disse que eu tinha, ela era real, e foi a única coisa que me impediu de me suicidar. E ainda tinha que comer carne fresca. Mas eu não sei quantas das lembranças sobre ter sido assassinado eram reais... Talvez eu tenha morrido, talvez não, e o único que poderia responder isso não era confiável.

Ninguém conseguiu explicar... Na verdade, aceitaram com tanta facilidade que eu achei estranho, mas tentei não focar naquilo. Me pediram pra manter isso em segredo, então decidi fazê-lo pois não queria que isso interferisse na minha vida mais que o necessário. Mantive uma dieta de um coelho por semana e prometi nunca falhar com ela. Também engordei um pouco... Não tanto quanto na adolescência, já que havia aprendido a controlar meu distúrbio alimentar, mas acho que o meu normal era ter uma pancinha.

A internação me fez pensar em como eu deveria viver dali pra frente, eu não queria voltar pro estilo de vida que eu tinha no Texas e sentia que precisava compensar o crime que cometi, por isso... Eu voltei a frequentar a igreja, e já que eu também não tinha planos de me relacionar com mais ninguém, após muita terapia e longas conversas com meus amigos do orfanato, com as freiras, padres e o Bispo da minha paróquia, decidi que era hora de seguir o caminho de Deus, mesmo que eu ainda não estivesse em bons termos com Ele.

Acontece que, contrário às regras do Vaticano, existem muitos padres gays por aí, em boa parte que também tiveram uma experiência ruim com a homossexualidade e decidiram seguir um caminho que os permitiria reprimir quem são para o seu próprio bem. Conheci alguns seminaristas, tínhamos um grupo de reabilitação onde nos ajudávamos a treinar nosso andar, tons de voz e tudo o que precisávamos para que as pessoas não percebessem a nossa sexualidade. Para sermos padres, precisávamos parecer neutros.

Por causa da minha condição era melhor que eu não morasse no campus, então os Neumanns compraram uma casa pra mim, sem muito luxo pois eu não queria, mas grande o suficiente para criar meus coelhos no quintal. Também pedi ao Edwin pra dizer a eles que parassem de me mandar dinheiro assim que eu me formasse. Eu sabia que precisava deles por enquanto, mas pretendia cortar esses laços assim que fosse capaz de me sustentar, seria a coisa certa a se fazer.

Os três anos após ter recebido alta da minha internação passaram rápido. É claro que eu ainda tinha que lidar com alguns problemas, mas estava melhorando com o tempo. Além do Transtorno de Estresse Pós-traumático, eventualmente fui diagnosticado com Borderline. Não era fácil lidar com isso, mas com a medicação apropriada e a ajuda das pessoas à minha volta, assim como minha dedicação ao seminário, logo comecei a me sentir... Feliz. Eu estava me curando.

Mas então, poucos meses antes da minha graduação, tudo virou de cabeça pra baixo. Recebi uma carta do Departamento de Polícia do Texas, a execução de Owen havia sido agendada e eu, como vítima, fui convidado a assistir. Por conta disso, as memórias que eu trabalhei tanto para reprimir voltaram, e eu pude sentir o quanto elas ainda me afetavam. Eu ainda tinha aqueles sentimentos escondidos dentro de mim, e ao mesmo tempo que estava feliz por isso finalmente acabar, não queria que ele morresse.

Fiquei paralisado. Não consegui sair de casa no dia seguinte e, após matar e comer todos os dezesseis coelhos que mantinha em meu quintal em um surto de fome, me deitei na minha cama e fiquei lá, incapaz de me mover. Eu estava tão fora de mim, tão perdido nas memórias que iam e vinham e me drenavam completamente a energia, que mal notei o movimento à minha volta.

Uma freira me fez tomar meu remédio, ela me alimentou com uma sopa quentinha e limpou meu corpo do sangue seco de coelho e tudo mais, já que eu estava ali há um bom tempo. Algo parecido já havia acontecido, na clínica, e eu fiquei envergonhado por ter que passar por aquilo novamente... Mas aquela pessoa tinha cheiro de família, e isso me confortou. Sua voz suave cantava louvores e rezava pela minha recuperação, e assim minha consciência lentamente voltou para o momento presente.

- Irmã Julia... - Chamei, tentando me levantar da cama, mas ainda estava tonto.

- Não se levante. - Pediu, me empurrando de volta. - Por favor, descanse até os efeitos colaterais do remédio diminuírem.

- Desculpa, eu te dei trabalho...

- Não precisa se desculpar, não é trabalho algum cuidar de um amigo. E eu compreendo a situação, era o esperado após receber tal notícia.

- Então você sabe?

- Não pude evitar ver a carta, desculpe por isso.

- Tudo bem. Acha que devo ir?

- Sinceramente, não. Você esteve bem durante os últimos anos, temo que isso o faça voltar àquele estado terrível em que ficou.

- Mas eu quero ir. Mesmo que eu pareça bem por fora, tem sempre uma sensação de que vou explodir a qualquer momento. Às vezes, ainda vejo o rosto dele por onde vou. Eu apenas tento ignorar mas... Talvez, se eu ver que acabou, isso finalmente venha a ter um fim.

- Eu entendo. Nesse caso, estarei lá com você.

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