10 - Solto

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De início, nem me importei com a porta aberta. Sabia que ele voltaria logo, mas logo notei que estava demorando muito. Muito mesmo... Era a minha chance, não era? Não tinha nada que me impedisse de sair por aquela porta, Owen provavelmente estaria no quarto da mãe dele então eu só precisava esperar no banheiro até ele voltar pra oficina, pra conseguir sair sem problemas... Mas isso seria fácil demais, né? Ele devia estar fazendo um teste, e se eu tentasse sair perderia todo o privilégio que havia conquistado... Mas que porra, "privilégio"? Quando foi que meus parâmetros ficaram tão baixos?

Eu deveria ir. Era a minha chance, eu tinha que tentar... Mas o que me esperava lá fora? Os amigos que eu pensava ter passaram a me odiar por causa do meu ex, eu com certeza já havia perdido o meu emprego e não havia pago o aluguel, então o senhorio deve ter tomado o apartamento de volta. Será que a polícia me ajudaria? Será que acreditariam em mim se eu dissesse toda a verdade? Eu sentia como se a corrente ainda estivesse em volta do meu pescoço... Não sei por quanto tempo fiquei perdido em meus pensamentos ao invés de agir, mas logo ele apareceu na porta.

- Ah, você ainda está aí. - Disse, como se estivesse surpreso. Antes eu teria respondido de forma rude, mas agora apenas o encarei sem expressão alguma em meu rosto. - O que está esperando? Vamos lá pra cima. - Então eu tinha razão, ele esperava que eu saísse. Mas o que será que ele queria? Agora eu estava com um pouco de medo, por isso continuei sem reagir. Daí ele se aproximou e me segurou pelo braço, me arrastando lá pra cima. - Você ganhou peso, seu braço já não está mais tão magro. - Eu apenas continuei o encarando, meu coração começou a bater forte pois eu não sabia o que se passava em sua cabeça mas tinha certeza de que não era nada bom. Ao menos, agora eu era capaz de sentir alguma coisa.

Eu estava ficando cada vez mais assustado durante o trajeto até a cozinha, mas então... Aquilo era esquisito. Haviam dois pratos sobre a mesa, um com carne crua e outro com... Uma refeição "normal". As cortinas estavam abertas e eu pude ver que era noite lá fora, mas não parecia ser muito tarde. Havia gente na rua. De início, tive o impulso de tentar pedir ajuda e até parei em frente à janela, encarando as crianças que brincavam do outro lado da rua... Mas por algum motivo, não consegui.

- Ei, sente-se. - Pediu, e assim o fiz. Já estava acostumado a obedecê-lo, mesmo que aquilo não tivesse soado como uma ordem. Ele também se sentou, bem na minha frente, e começou a comer. Mas que merda era aquilo? O que ele estava fazendo? - Não vai comer? - Não respondi, apenas o encarei com minhas sobrancelhas franzidas, desconfiado. Será que estava envenenado? Ele suspirou. - É a mesma carne que preparei pra mim, a única diferença é que a sua está crua. Você precisa comer dessa forma. - Peguei o garfo e comecei a espetar a carne, ainda desconfiado. Mas se a minha era a mesma que ele estava comendo...

- É bom o gosto de carne humana? - Perguntei a primeira coisa que veio à minha cabeça.

- Ah, então você sabe falar... Mas não posso te responder isso, já que nunca comi.

- Mas essa carne...

- É só um bife que comprei no mercado.

- Então eu já acabei de comer aquele cara? Quando vai me trazer outro? - Inesperadamente, Owen largou o garfo e me encarou, olhando bem em meus olhos. Ele estava sério, e até suspirou antes de falar.

- Desculpe, eu menti pra você. - Fiquei confuso. Mentiu? Pelo que, exatamente? - Não tem como manter um corpo na geladeira, minha vizinha fica com a minha mãe quando eu saio pra entregar as encomendas então eu não podia arriscar. - Hein? Havia alguém que poderia ter me ajudado mas eu nunca notei? Ela nunca notou que eu estava lá? - Você tem comido carne comum durante todo esse tempo. - O que...?

- Então é por isso que ainda estou com fome.

- Já te falei, você não precisa de carne humana. Mas pode ser que a carne do mercado não seja fresca o suficiente, talvez tenha que comer um animal vivo.

- Mas se for humana, acho que vou ficar mais satisfeito. O gosto é melhor.

- Então você é mesmo um canibal.

- Você que disse, eu não sou mais humano. Não posso ser canibal já que não pertencemos à mesma espécie. Por favor, me traga o que eu quero.

- Ah merda, você quebrou mesmo. Sinto muito, eu não deveria ter dito aquelas coisas pra você.

- Não é sua culpa, é assim que eu sou de verdade. Eu só estava tentando me esconder de mim mesmo, mas não preciso mais disso. Não tem ninguém pra me julgar.

- Tem eu, estou te julgando. Naquele dia, depois de te ver comer aquele cara, eu vomitei. Foi nojento.

- Ainda assim, é você que corta as pessoas em pedacinhos e as joga numa mala. - Ele suspirou, deslizando as mãos pelo rosto.

- Não vou mais fazer isso.

- Por quê?

- Você me fez refletir sobre quantos daqueles caras eram como você, alguém tentando lidar com uma vida de merda que teve o azar de me encontrar.

- "Vida de merda"? Tá com pena de mim agora? Eu não mereço compaixão, sou um monstro. Pensando claramente, eu era bem abusivo com o meu ex. Eu forçava situações que ele não gostava por não querer perdê-lo, então eu mereci ter sido deixado. Não só isso, fui uma pessoa horrível durante a minha vida toda. Eu mereci ter sido morto por você.

- Para com isso. Você não é um monstro, só um cara que foi ferido por aqueles que deveriam cuidar de você.

- Você também é assim.

- Mas a diferença entre nós é que você tentou ser alguém melhor, e eu não! Eu descontei em gente que não tinha nada a ver com os meus problemas.

- Sim, você fez isso ao invés de descontar em quem ama, e agora eu tenho consciência de que machuquei a quem amava. Então você não é um monstro, mas eu sim.

- Mesmo que eu acredite nisso, agora eu seria um monstro! - Gritou, e essa foi a primeira vez em que eu não tremi. Owen cobriu o rosto para esconder as lágrimas que começaram a escorrer, e mal foi capaz de dizer as próximas palavras entre seus soluços. - Eu finalmente fiz o que deveria ter feito desde o início. Ela se foi.

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