Levou um tempo pra eu voltar ao normal depois que ele foi embora, ainda podia sentir seu gosto na minha boca mesmo que minha língua o tivesse tocado por menos de um segundo. Era difícil acreditar que eu estava com tanta fome a ponto de querer morder aquele cara... Não que ele não merecesse. Pra falar a verdade, ele merecia coisa pior, mas eu ainda precisava dele. Eu não podia fazer nada contra ele, ou ficaria trancado naquele lugar por sabe-se lá quanto tempo... Mas será que um dia eu seria libertado?
Eu estava curioso pra saber o que ele traria pra eu comer. É claro, pela lógica seria algum prato qualquer mas não dava pra esperar lógica vindo daquele cara. Já que ele estava me tratando feito um cão, cheguei a pensar que me traria comida de cachorro ou algo assim. Nesse estado eu comeria qualquer coisa, por isso fiquei surpreso quando ele chegou com um prato, pegou uma cadeira e se sentou bem no limite do meu alcance. Eu estava a apenas um centímetro de seus joelhos, e o cheiro de comida chegou ao meu nariz
Não me importavam os vegetais, mas a carne parecia tão deliciosa que me fez salivar novamente. Observei-o cortar, o caldo escorrendo pela faca que trabalhava para revelar o interior vermelho da carne mal passada. Arfei, desejando tê-la em minha boca para que o sabor se espalhasse pela minha língua e que eu pudesse cortar as fibras com meus dentes. Ele aproximou um pedaço e eu abri meus lábios, colocando a língua pra fora. Quase consegui lamber, mas ainda estava muito longe.
— Você quer isso?
— Por favor... – Murmurei. Ele sorriu, e de repente levou o garfo direto pra sua própria boca. Chorei enquanto ele colocava a carne entre seus dentes, movendo sua mandíbula vagarosamente até a comida finalmente deslizar para sua garganta. Aquilo era tortura.
— Que pena, isso não é pra você.
Era agonizante vê-lo comer o prato todo, ter minhas esperanças de ser alimentado destruídas, engolidas por ele como se estivesse engolindo também minha humanidade e dignidade. Naquele momento eu faria qualquer coisa pra poder comer, mesmo que ele mandasse eu lamber minhas próprias bolas eu arrumaria uma forma de quebrar minhas costelas pra que isso fosse possível, só pra ter a chance de encher meu estômago.
Mas ele não pediu nada. Tão repentinamente quanto chegou, Owen foi embora sem dar explicações. Chorei, achei que ele tivesse desistido de me matar de fome mas agora não parecia ser isso. Bem, talvez tivesse um lado bom, talvez eu finalmente ficaria livre dele. Ainda assim, chorei tanto que acabei adormecendo. Não sei quanto tempo se passou mas acordei novamente com um barulho no andar de cima, parecia uma briga. Fiquei alerta, pronto pra gritar por ajuda, mas ao mesmo tempo com medo demais para emitir qualquer som... Então tudo ficou quieto.
Após um tempo, a porta abriu. Meu coração disparou em expectativas, era alguém pra me salvar ou...? Era ele. Suspirei, frustrado, então notei que ele arrastava algo. O cheiro de sangue chegou ao meu nariz e meu estômago roncou antes que eu pudesse ver o que era e quando pude, gritei. Era... Era uma pessoa! Uma pessoa! Um homem como eu, que parecia ter mais ou menos a minha idade, e ele estava...
— Cala a porra da boca! – Owen ordenou e eu não sei o porquê, mas parei de gritar.
Será que ele havia me domesticado ou eu estava apenas fraco demais pra lutar contra? Ou talvez... Apenas talvez, eu não estivesse tão assustado. Porque enquanto ele arrastava aquele homem pra perto de mim o cheiro de sangue começava a me deixar tonto, mas não de uma forma que me faria vomitar. Engatinhei para perto, lentamente... Eu mal podia ouvir seus batimentos, ele ainda não estava morto mas muito próximo disso. O cheiro me inebriava, convidando minha língua a prová-lo. Aquilo era absurdo. Não, eu não podia. Era uma pessoa, eu não-
— Vai continuar só olhando? – Owen perguntou, e eu me arrepiei.
Era aterrorizante ouvir sua voz enquanto tentava me controlar pra não perder minha sanidade. Uma coisa era querer morder ele, alguém que já me matou quatro vezes... Foram quatro? Talvez mais? Enfim, eu não podia atacar aquele homem que eu mal conhecia, que era uma vítima assim como eu. Eu jamais faria aquilo, mas meu estômago... Era tão doloroso...
— Ei, eu trouxe isso pra você. – Ele rasgou a camisa do rapaz, revelando a carne aberta. – Vai logo, come.
O sangue jorrou, escorrendo na minha direção, e eu encarei enquanto se aproximava do meu joelho. Não conseguia mais ouvir seus batimentos. O líquido vermelho atingiu minha pele e eu arfei, meus dedos deslizaram até o chão para tocá-lo e eu tremi enquanto minha mão se direcionava à minha boca, que estava aberta, pronta pra provar... Mas antes de chegar à minha língua, um lampejo de consciência me fez parar. Não foi suficiente. Logo, aquele cheiro estonteante fez com que ficasse difícil não lamber meus dedos, e após isso parece que algo havia sido engatilhado em meu cérebro. Algo que nunca deveria ter sido provocado.
Me arrastei para perto do corpo à minha frente e afundei meu rosto em sua barriga, gemendo com o prazer causado pelo líquido que preenchia minha boca. Meus dedos deslizaram pela abertura, sentindo a maciez de seu interior. Foi particularmente difícil segurar seus órgãos, como tentar pegar sabão dentro d'água, mas assim que consegui agarrar e levar à minha boca, meus dentes fizeram perfeitamente seu trabalho.
De início eu escutei a risada daquele cara, ele pegou algo dentro do bolso do rapaz mas eu não vi o que era e nem soube o motivo de ter levantado seu braço. Então, após um tempo, ele grunhiu e foi embora. Eu nem me importei, a única coisa na minha cabeça era aquela refeição deliciosa. Não sei se eu sentia isso por eu estar há tanto tempo sem comer mas o sabor era incrível e incomparável, não lembro de ter me alimentado de outra coisa tão boa, não a ponto de me fazer querer comer até não poder mais... Não, pra falar a verdade, da última vez que isso aconteceu eu devia ter uns... Onze anos?
Meus pais estavam discutindo no carro enquanto viajávamos pelo deserto, não me lembro o assunto da briga nem o motivo de termos deixado nossa casa no Arizona no meio da noite, só consigo lembrar do carro caindo do penhasco. Eu usava um cinto de segurança, eles não.
Não sei quanto tempo levou pra eu ser resgatado, nem o que aconteceu entre essa memória e a próxima, de quando eu entrei pela primeira vez no orfanato. Tinha um banquete me aguardando, com uma variedade de frutas, pães e geleias, e outras coisas delociosas que eu nunca havia visto antes. Comi até não aguentar mais. Naquele momento, por mais horrível que fosse, não pude não me sentir agradecido pela morte dos meus pais. Eu não sabia o quanto isso me custaria... Mas por que eu estava lembrando do passado? Foi há tanto tempo, parecia outra vida.
Minha barriga estava cheia, acho que havia comido mais do que deveria mas eu não consegui pensar nisso na hora. Quando voltei à consciência... Quero dizer, quando realmente voltei à consciência, havia um buraco enorme que cabia toda a minha cabeça, e tão fundo que eu era capaz de ver as vértebras. Tinha sangue pra todo lado, pelo meu rosto, minhas mãos, meu corpo inteiro. Eu queria desviar o olhar mas tive medo, pois aí eu veria que aquilo que eu havia acabado de comer tinha um rosto. Que era uma pessoa. Mas eu já havia me tocado disso, então não pude impedir o desespero de chegar à minha alma.
Eu havia acabado de comer carne humana como se fosse um delicioso jantar. Perdi minha humanidade, me tornei um monstro...! Ao menos... Ao menos era o que eu deveria pensar. De fato, foi o que pensei de início, e chorei por isso, mas em algum momento notei que minhas lágrimas eram falsas pois eu não conseguia sentir nada. Então parei, não tinha mais motivo pra fingir. Não tinha público.
Ouvi a porta abrir, e de lá ele veio.
— Terminou? – Não respondi, apenas continuei encarando o amontoado de sangue e vísceras à minha frente. Não estava pensando em nada. – Não consegue comer mais? Vai ser mais fácil pra mim. – Finalmente olhei pra ele, seu queixo caiu de início mas ele logo disfarçou e riu. – Peraí, isso é perfeito! – Ele pegou algo dentro do bolso, um celular, e tirou uma foto minha. Espera, aquele era...? Era o meu celular! Ele tinha guardado durante esse tempo todo? – Você deveria ver sua cara agora, tá parecendo a Carrie! – Riu mais um pouco, então parou pra respirar antes de ficar sério. – Isso é um problema. – O vi procurar algo nos bolsos novamente, e o objeto tilintou quando o tirou de lá, e então ele foi ao cadeado que prendia a corrente à mesa. – Banho de balde não vai dar certo, vamos lá pra cima.
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Sawdust
HorrorApós afogar as mágoas na bebida por conta do término de seu namoro, Elliot Taylor acorda nu em uma oficina de marcenaria. Ele tenta lembrar o que aconteceu e, ao conhecer o belíssimo marceneiro, tira a conclusão de que dormiu com ele na noite anteri...