Eu acabei aceitando o que a Irmã Janice disse sobre compartilhar minha bênção com os outros. Mesmo se a pessoa soubesse estar sendo infectada, não acho que eu seria capaz de julgar o merecimento dela, e eu não poderia impedir que ela compartilhasse com pessoas que não merecem. Esse também era um bom motivo pra eu manter isso em segredo, pois poderia ser perigoso caso uma pessoa má soubesse e viesse atrás do meu sangue.
E as coisas eram burocráticas. Eu conversei com o Bispo e descobri que até pra aconselhar as pessoas a buscar um oncologista, eu teria que passar por um longo processo para comprovar que minha condição era um milagre e provar minhas habilidades em detectar o câncer, e isso certamente faria minha condição ser exposta a todos. Eu decidi esperar até a minha ordenação, o último ano do seminário já era estressante o suficiente. Além de tudo, eu tinha que lidar com o câncer da Irmã Janice.
Minha vida seguiu em frente depois daquele dia. Não posso dizer que foi fácil superar todos os sentimentos que ressurgiram após a execução do Owen, mas o fato de que eu tinha uma pessoa com quem me preocupar logo me fez esquecer. Um mês após aquele dia, ela se mudou pra minha casa. Ela ainda estava “bem”, como costumava dizer, mas teve um surto de gripe no orfanato e decidimos que era melhor pra ela não arriscar ficar com as crianças. Eu não ficava doente, nunca, e por isso a convenci a se mudar.
Quanto ao cheiro, eu acabei me acostumando, mesmo que eu tivesse que comer os coelhos na garagem pra não perder o apetite. Não era um problema, ela nem podia ficar perto deles mesmo, então comer longe dela era melhor. Eu tentava manter a casa o mais esterilizada possível, e cuidava da Irmã Janice sempre que ela precisava, o que era raro pois ela era teimosa e queria fazer tudo sozinha.
Mesmo assim, sempre que eu precisava sair eu chamava uma freira pra ficar com ela. O seminário trazia várias responsabilidades, e a Irmã Janice insistiu pra que eu não abandonasse os trabalhos de caridade por causa dela, então lá estava eu, no início do inverno, distribuindo sopa e cobertores para os moradores de rua. Eu já conhecia todo mundo, então estava no último abrigo da minha área, mesmo tendo provisões sobrando.
— Obrigada, Irmão. – Dona Shirley, a senhorinha que morava em uma casa abandonada junto com algumas outras pessoas, era a última da fila. Ela pegou sua tigela com as mãos trêmulas, quase derrubando a sopa. Era triste assistir aquilo. Shirley tinha Parkinson e, mesmo que alguns moradores da ocupação a ajudassem, não havia ninguém que realmente cuidasse dela.
— Vamos, deixe eu te ajudar. – Peguei a tigela de sua mão, não era justo deixar aquela senhora carregar a sopa daquele jeito.
—Ah, você é um cavalheiro, Irmão Elliot. – Sorriu.
— Fico feliz em ajudá-la. – Peguei também um cobertor, colocando-o debaixo do braço pra conseguir levar tudo.
— Ah, antes de entrarmos, posso te pedir um favor?
— Claro.
— Há um jovem que acabou de se mudar, ele normalmente é bem gentil, mas às vezes fala sozinho e joga coisas nas paredes…
— Ele está incomodando? Posso chamar o serviço social, se for o caso.
— Não, não é isso! Ele parece uma boa pessoa, só um pouco ruim da cabeça! É só que, mesmo que eu o tenha visto entrar antes de você chegar, ele não veio pegar a sopa. Algumas pessoas disseram tê-lo chamado, mas ele parece estar tendo uma crise de novo. Você pode dar uma olhada nele e levar um pouco de comida e um cobertor, por favor? Acho que ele não tem nada além das roupas que está usando, e tá ficando frio ultimamente, por isso estou preocupada.
— Ah, é claro!
Carregar dois cobertores e duas tigelas de sopa não foi tão fácil, mas eu acabei conseguindo. Deixei a Dona Shirley no quarto dela e subi as escadas pro segundo andar, onde falaram que aquele rapaz estaria. Algumas pessoas me cumprimentaram no caminho. A maioria que vivia naquela casa era gentil, mas obviamente havia alguns problemáticos no meio. Então, claro, fiquei alarmado quando um deles falou comigo assim que parei na porta do quarto do rapaz.
— Você quer ver o Daryl? – Ouvir aquela voz de repente me assustou, mesmo que a minha condição de seminarista e voluntário me trouxesse segurança. Até os traficantes nos respeitavam. – É melhor deixar as coisas na porta e ir embora. – Me virei para olhar para o homem que disse aquilo, e eu já sabia quem era. Pablo era um imigrante Paraguaio, eu não sei a história toda, mas há rumores de que ele era um membro de gangue que fugiu pra se esconder nos Estados Unidos. Mas apesar daquilo e do fato de que ele era tão grande que poderia me partir ao meio, eu não me senti intimidado.
— Dona Shirley me pediu para vê-lo. Me disseram que ele tem problemas mentais, então talvez eu possa ajudar.
— Ela é uma boa pessoa, e burra também. Aquele cara é um babaca, dá pra ver, mas todo mundo tem pena dele porque ele finge ser legal. E, sinceramente, também acho que ele finge ser maluco.
— Ainda assim, meu trabalho é ajudar. – Eu não podia acreditar em uma história pelo ponto de vista de uma só pessoa, como eu ia saber quais eram as intenções dele?
— Tá bom, vai lá. Você que sabe. – Ele cruzou os braços, encostando na parede. Eu bati na porta, mas ninguém respondeu, mesmo que eu pudesse ouvir uma voz murmurando lá de dentro.
— Senhor Daryl! – Bati novamente. – Aqui é o Irmão Elliot, eu estava distribuindo sopa e cobertores mas você não foi pegar, então eu trouxe pra você! – Ainda assim, sem respostas.
Eu sabia que ele estava lá, era melhor deixar as coisas na porta… Não, depois do Pablo me pedir pra fazer isso era melhor entregar pessoalmente. Novamente, eu não tinha como saber de suas intenções, certo? Então eu segurei a maçaneta e abri a porta, entrando no quarto. Estava escuro, é claro, não tinha energia naquela ocupação, mas eu conseguia enxergar pois, assim como meu olfato e audição, minha visão também havia melhorado. Então eu vi o rapaz, encolhido sobre um colchão velho e cobrindo os ouvidos.
— Vá embora. – Murmurava repetidamente, mas não parecia ser pra mim. Pobrezinho, já vi vários como ele enquanto estava internado. Deve ser esquizofrenia. Eu deveria chamar o serviço social, mas primeiro tinha que garantir que ele sobreviveria mais uma noite.
— Tá tudo bem, Senhor Daryl. – Falei, colocando a tigela de sopa no chão ao seu lado. – Consegue sentir esse cheiro? É uma sopa bem gostosa, é melhor comer antes que esfrie.
Daryl continuou murmurando as mesmas palavras, então decidi desdobrar o cobertor e jogá-lo sobre ele, estava ficando frio e suas roupas não eram apropriadas para o inverno. Mas, assim que o tecido tocou seu corpo, ele pulou sobre mim de repente, me derrubando no chão. E então, eu pude ver seu rosto.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Sawdust
HorrorApós afogar as mágoas na bebida por conta do término de seu namoro, Elliot Taylor acorda nu em uma oficina de marcenaria. Ele tenta lembrar o que aconteceu e, ao conhecer o belíssimo marceneiro, tira a conclusão de que dormiu com ele na noite anteri...