Crepúsculo

42 3 7
                                    

O sol se despede do lado ocidental do mundo, o céu é uma aquarela de cores dos tons mais rubros ao mais negros. No asfalto somos só um pontinho desprezível cercados por arranha-céus. O cenário do lado de fora da janela vai se tornando cada vez mais familiar e me preparo para saltar. O ônibus estaciona, eu e mais algumas pessoas desembarcamos, cada um segue para seu lado exaustos pela rotina nossa de cada dia. Caminho em direção ao condomínio, meu apartamento fica no 4º andar. Cumprimento o porteiro e marcho até o elevador. Não sou do tipo de inquilina que conhece todo mundo do prédio e que participa das comemorações comunitárias de fim de ano. Aliás nessas ocasiões eu costumo viajar para casa.

As portas metálicas se abrem, na mão trago a chave do meu pequeno e aconchegante mundo. Jogo a mochila na primeira poltrona que vejo e vou me desfazendo das botas e do casaco a medida que me aproximo da cozinha. Abro a geladeira e pego um pote de sorvete, da gaveta do armário uma colher. Levanto a janela de vidro e atravesso em direção as escadas externas afim de assistir a chegada da noite em grande estilo. Shiro se aproxima de mim com aquele olhar sedutor e esotérico que só os felinos tem, fica andando pra lá e pra cá roçando em minhas pernas e não se engane, os gatos não são interesseiros a ponto de mendigar carinho, a personalidade deles é bem similar a nossa, são independentes e difíceis de serem conquistados. Ela não pertence a mim, pertence ao prédio inteiro. A dona de sua mãe teve que se mudar e não podia levar a ninhada, então eles ficaram aqui e todo mundo tem sua parcela de contribuição no cuidado deles. A Shiro é a mais aventureira, ela sobe cativando todos os moradores do 1° ao 6° andar com seu pêlo branco e seus olhos âmbar.

Acaricio ela e continuo a comer meu sorvete de creme. Lá fora a cidade ruge, sinetas, buzinas, luzes de todas as cores, carros, motos, congestionamentos, fumaça, milhões de pessoas ao telefone, voz e imagem sendo transmitidos em tempo real numa complexa teia inorgânica... você não precisa mais estar num lugar fisicamente. A mesma tecnologia que fez nossos horizontes se expandirem também nos tornou menos humanos, frios e superficiais. Terminado o crepúsculo eu retorno para dentro do apartamento, preciso preparar minha janta. Acendo as luzes, tateio o armário em busca de um recipiente de vidro e exploro a geladeira em busca de ingredientes para um bom acompanhamento para a massa pronta de macarronada. Não sou uma exímia cozinheira mas me viro como posso.

Já faz 1 ano que moro sozinha, uma vez ou outra sinto falta de companhia mas com o tempo a gente acaba se tornando amiga da solidão. Minha mãe morava comigo, mas teve que voltar para nossa antiga casa cuidar da minha avó que já está bastante idosa. Coisa que os outros filhos alegam não ter como fazer... Pois bem, a casa é na verdade um casarão, uma modesta fazenda onde ainda se é possível contemplar uma noite estrelada sem a poluição visual que temos aqui na cidade. Todas as férias nós íamos para lá. Eu cresci subindo nas árvores, explorando pequenos riachos, consumindo produtos da terra razoavelmente livre de agrotóxicos, comendo carnes provenientes da caça e da pesca e nas noites frias as madrugadas eram silenciosas, exceto pela cantiga dos grilhos, os coaxos dos sapos, além do crepitar da madeira no fogão à lenha.

À medida que fui crescendo essas coisas foram sendo deixadas de lado, meus pais tinham pouquíssimo tempo, o trabalho consumia toda a energia e a atenção deles, eu mal os via. Para meu conforto eu tinha a escola que ocupava 4 hrs do meu dia. Minhas notas sempre foram boas, não que eu fosse do tipo nerd, só era bem aplicada... o que me rendia muito deboche por parte dos meus caros colegas que me apelidaram de a "queridinha da professora". Nessa época eu não tinha um estilo definido, era simplesmente comum. Aí por volta dos 13 tudo veio à tona, inclusive a menstruação que fez o favor de descer na aula de educação física. Todas as meninas ficaram me olhando, começaram a compartilhar um olhar entre si como se eu não tivesse percebido pelos cochichos e risadinhas que era sobre mim. Fiquei meio apavorada, eu já esperava que fosse acontecer, mas não que seria naquela hora. Algumas meninas mais velhas foram mais solidárias comigo me acompanhando até o banheiro e me arranjando um absorvente. No outro dia quando entrei na sala, algumas meninas me olharam, senti uma onda de constrangimento me envolver, baixei a cabeça e fui me sentar.

Convergindo (Em Construção)Onde histórias criam vida. Descubra agora