Tenho apenas 30 min para ensaiar, a estréia é no sábado, mas eu havia me esquecido que hoje é quinta. Eu, David, Alan e Rosie seguimos a passo firme para a garagem da casa do Alan. Lá nos espera Gustavo, Gabriel e Susie, sua namorada que também faz parte da banda. Eles estudam em uma outra escola. Gabe, como informalmente chamamos e eu... nos conhecemos numa das festas promovidas pelos meus pais. Foi uma grande surpresa e um alívio não me sentir mais um ser único da minha espécie naquele lugar. Isso foi há uns dois anos atrás e desde então temos trabalhado nesse projeto que chamamos de We'll not Fall, não iremos cair. Somos um misto entre metalcore e rock alternativo, tudo depende do nosso humor e da disposição do Gabe para cantar.
Inicialmente éramos só nós dois e a Susie, logo após veio o Guga, ele começou um curso de outono no mesmo conservatório que eu frequentava, sua família também estava entre uma das mais influentes do estado, mas ele estava pouco se fodendo para isso e seus pais, ao contrário dos meus pouco se importavam, claro... ele era só um puto sortudo em ter mais dois irmãos para carregar o legado da família. Bom, foram só algumas semanas mas o suficiente para criarmos uma amizade, ele se destacava com seu jeito relaxado, bagunceiro no meio daquela massa de pessoas impecavelmente trajadas. Isso chamou minha atenção e fui instantaneamente incitado a ir lá puxar um papo. Sempre era repreendido pelo seu déficit de atenção e o foda é que ele nem ligava, dizia que não ia ficar muito tempo mesmo, tinha é que aproveitar. Agora quando o assunto eram Garotas... ele travava. Enfim... vai entender né?!
A instituição era bem conservadora por aí você já tira os tipinhos que frequentavam. Aliás, quem olha pra mim já me classifica como um boçal, sr. Bom de mais para se enturmar... mas nem é isso, sou quieto mesmo e não quieto do tipo dissimulado. Curto garotas, mas de uma espécie bem rara. Sou bonitão, do tipo que não passa despercebido, não digo para me gabar, é só um fato. Me visto bem, porém dentro do meu estilo, o que para muitos engomadinhos passa a impressão de que voltei da guerra. Uns até chegam a zoar às vezes, os mais velhos ficam me analisando de alto a baixo com uma expressão de reprovação... e não é porque pertenço a uma classe social mais alta que eu não esteja vulnerável a isso. Os seres humanos gostam disso, somos o ditador e o escravo na mesma pessoa, elaboramos padrões, nos matamos para alcançar e mesmo quando alcançamos ainda somos criticados; não há lugar onde possamos ficar de boas porque todos temos olhos e infelizmente eles só vêem o que tem por fora.
Através do Guga, os outros dois membros foram incorporados a nossa banda inicialmente sem nome, não nos preocupávamos com isso, nosso som é só pra gente curtir as habilidades que nem todos tem codificadas no DNA. É um trajeto bem suave até a garagem, os instrumentos já estão a postos, o casal já tinha deixado tudo nos trinques e nos aguardavam amistosamente.
- Meninos, eu pedi um lanche pra vocês, tenho que ir pegar o ônibus... já tá na minha hora!!! E não fique até tarde aí Alan...Ponha as roupas pra lavar.
Quando ela finalmente sai, Alan faz a contagem para que nos situemos dentro do ritmo e Susie toca um acorde de Mi maior no teclado para nos orientar acerca da introdução. Logo, a música flui em alto e bom som, ressoa e se espalha pelo ambiente sem isolamento acústico. O dueto de guitarras do solo inicial, sequências harmônicas com afinações em diferentes tonalidades, mas que se complementam. Se fosse um sabor teria um gosto agridoce, seria picante e ao mesmo tempo suave. Uma tênue linha entre dois extremos. Se fosse um esporte talvez fosse como saltar de parapente ou mergulhar num Bungee Jumping rumo ao desconhecido. Toda a adrenalina correndo solta em suas veias.
Quando o tom sobe sinto meus músculos relaxando. Não é só minhas mãos que executam as notas, todo o meu corpo faz parte disso. A guitarra não possui caixa de ressonância, por isso precisa de um amplificador para que quem está distante possa ouvir, num nível mais particular, meu corpo é a caixa de ressonância para minha alma. O ritmo ditado pela bateria, as pulsações do meu coração. Acho que meu cérebro fica supersaturado de ocitocina, dopamina e todas essas a "minas" do prazer.
O Gabe começa a cantar, ele é o responsável pelo vocal melódico, seu timbre é um tenor suave, mas nada parecido com aquele vozeirão de cantores de ópera, o inglês desliza naturalmente de seus lábios, como se ele fosse um estrangeiro nada modesto. Ele termina de recitar a estrofe e eu e o Guga (além de sermos os guitarristas solista e harmônico sucessivamente também fazemos o back vocal... ) já preparamos a base para a inserção do scremo do David (que também é responsável pelo contrabaixo). De primeira não fica tão legal, tentamos 2, 3 e na 4° chegamos ao cúmulos da fodisse. Uma vez ele sugeriu que seria da hora ter um vocal feminino pra incrementar e abrir uma frequência de tonalidades que o falsete do Gabe não alcançava... nós até tentamos achar uma cantora mas... não deu muito certo, então desistimos da idéia. A campainha soa, o lanche chegou, sanduíches com coca pra todo mundo. O cara olha pra gente como se aprovasse o nosso estilo, ele espera pacientemente a grana dos lanches que o Alan foi pegar. Eu engulo a minha parte o mais rápido possível, não que eu seja um esfomeado, mas, como uma Cinderela versão masculina sei que já chegou minha hora e preciso pegar o beco.
Me despeço da galera e sigo em direção a calçada da escola, você deve se perguntar porque não tenho meu próprio automóvel já que sou tão bonzão... pois é... ainda estou preso nos 17 anos e para os meus pais só com 18 que vou pegar num volante. É um porre, de todas as formas eles tentam me fazer dependente deles. Mas esses meus dias estão contados. Dou uma pausa dos meus passos apressados no ponto de ônibus, respiro profundamente e volto a andar, o ponto está razoavelmente lotado de gente, é a hora do fluxo contrário. A moça recostada no banco me olha com espanto, ela me parece familiar mas não tenho tempo para pensar preciso chegar logo no meu destino.
Chego no ponto de espera, tento regularizar a respiração e limpar o suor resultantes da pequena corridinha, 1 min depois meu pai chega, o fone bluetooth indica que está em ligação com alguém. Ele deve ter um cérebro feminino pra dar uma profunda atenção a duas coisas simultaneamente. Pergunta por altos como foi a escola, eu sei que é só um protocolo paternal e respondo vagamente. O trânsito assim como o das 7 da manhã é caótico, as pessoas tem pressa, só o que muda é a direção que elas seguem. O carro desliza sob o asfalto quando chegamos aos limites da cidade, os sinais urbanos vão desaparecendo e as árvores vão se integrando ao cenário, as luzes acesas denunciam a localização da mansão.
Ele estaciona, abro a porta e desço do carro, com passos preguiçosos atravesso o jardim, a porta estava aberta pois a governanta todos os dias rega as flores neste horário. Me arrasto pelas escadas, nem tô a fim de comer nada agora, ainda estou farto do lanche, talvez lá pelas 21 hrs eu sinta fome de novo mas isso é fácil de resolver.
- Will? A janta já está pronta
- Tô sem fome...
Subo as escadas e estando ainda no último degrau ouço ela resmungar algo, as mulheres quando viram mães parecem que tem seus cérebros reprogramados para virarem ditadoras cruéis. Meu pai nem fala nada, ele é bem na dele, acho que foi daí que desenvolvi essa personalidade taciturna. Enfim estou no meu santuário, novamente ele foi maculado, as roupas que estavam no chão estão dobradas e engavetadas, a cama está feita, os livros organizados na estante. Confiro a hora no meu celular, são 19 hrs e 20 min. O tédio vem me assombrar. Puxo uma cadeira e me posto a frente do monitor, abro o navegador, não sei o quê pesquisar. Minha mente fervilha, mas não de palavras. Desisto. Levanto-me num impulso e vou até meu quarto de estudo, pego meu velho companheiro, o arco e dirijo-me até a minha varanda. A lua dourada envolta por nuvens, pequenas estrelas cintilando aqui, acolá e para completar, um extenso véu negro. Começo a dedilhar as notas da introdução. O vento encarrega-se de fazer com que o som se propague por todo o jardim, retorcendo as folhas e flores como se elas estivessem mesmo dançando.

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Convergindo (Em Construção)
Dla nastolatków"...toda essa história começou há seis semanas atrás quando minha rotina continuava pacífica e monótona... aliás, eu já estava contando os dias para minha formatura, não porque estivesse empolgada e sim por querer me ver logo livre disso. Tão inocen...