Capítulo 21: Papel de mãe

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POV. Camila Ferreira

Doeu.

Ter que ouvir as piores frases da boca de quem me pariu a esse mundo. Doeu, ver que a minha própria mãe me amaldiçoava a cada instante.

"Ando devagar porque já tive pressa

E levo esse sorriso porque já chorei demaisHoje me sinto mais forte, mais feliz, quem sabeSó levo a certeza de que muito pouco seiOu nada sei"

Me sentia violada, machucada, assustada, envergonhada e sobretudo culpada.

Culpada por mãe ter parado no hospital, o que seria de mim se ela partisse?! Minha família se acabaria. Foi necessário tomar decisões, a primeira delas sem dúvidas seria se afastar de Muçambê até que o povo esquecesse aquele vexame. A segunda e pior decisão foi ter que deixar a fazenda de Domingos.

Não esperava encontrar Lauren tão cedo, mas infelizmente o universo quis passar na minha cara mais uma vez a sensação de estar perto daquela mulher.

Evitei olhar em seus olhos, porque sabia que se o fizesse a minha coragem iria pelo ralo.

Ingenuidade seria acreditar que ela iria aceitar a minha decisão tão facilmente, não sabia que aquela seria a nossa última conversa. Seu último ato naquela fazenda foi uma súplica pra que eu não desistisse de fazer o que faz de mim Camila Ferreira.

"Todo mundo ama um dia todo mundo chora

Um dia a gente chega, no outro vai emboraCada um de nós compõe a sua história e cada ser em si carrega o dom de ser capaz e ser feliz."

Passou-se uma semana e a cidade começava a esquecer o assunto. Todo mundo, menos minha mãe que fazia questão de me lembrar todos os dias o quão infeliz fui de me deitar com uma mulher.

— Ô de casa! - Era Carol.

— Pois não. - Minha mãe estava arisca com toda a família Gonçalves, ou melhor, todas as mulheres. Porque Pedro seguia sendo seu santo na terra.

— Que isso, Dona Simone. Sou eu, oxi. Posso entrar? - Carol tinha um punhado de papéis nas mãos. - É assunto de seu interesse.

Mãe era curiosa.
Carol entrou, se sentou na mesa espalhando os papéis.

— Bom, a senhora não foi mais as aulas, mas sei de sua evolução e também sei que a senhora já sabe assinar seu nome.

Até essa conquista mãe fez questão de esquecer por ter sido Lauren a mediante desse ato.

— Não faça essa cara, Dona Simone. Estamos orgulhosas dessa tua conquista. Aqui estão os papéis da indenização pela morte de Alexandre.

Mãe ficou até bamba, se sentou e olhou atenta a explicação de Carol. Por um instante vi Lauren em Carol.

— Preciso que a senhora assine esses papéis pra que eu possa dar entrada na liberação de todo o processo. Além disso Camila, se sente aqui conosco.

Me sentei ao lado de mãe.

— Aqui está um contrato trabalhista, preciso que você vá ao centro da cidade e tire sua carteira trabalhista pra que meu pai assine a mesma. Leia com atenção o contrato e por favor aceite a proposta. Principalmente a proposta de estudo, a fazenda está se oferecendo pra pagar um curso de medicina veterinária, pois sabemos de seu potencial com os animais.

A "fazenda", quem Carol queria enganar com esse papo.

— Calma, estou um pouco... - Fechei os olhos e neguei com a cabeça. - Como tudo isso surgiu? Eu não sei se posso aceitar.

— Pode sim, ela aceita. - Disse minha mãe.

— Eu vou pensar. - Respondi olhando pra mãe. - Podemos conversar lá fora, Carol?

— Certo, mas preciso desses papéis assinados o mais rápido possível. Ok? - Deixou avisado antes de se retirar da mesa.

Mãe olhava os papéis como se fossem pepitas de ouro.

— Isso foi coisa dela, não foi? - Ao sair na rua procurei por Lauren. - Cadê ela?

— Sim, foi coisa dela. Mas não nem adianta procurar, ela não está mais em Muçambê.

— Como é que não?! Como que ela fez tudo isso?

— Fazia um tempo que Lauren trabalhava em segredo nessas negociações. Ela foi embora deixando essa ordem pra pai, o coitado ficou arrasado e óbvio que aceitou. Nada mais justo, não é? Todos vocês merecem essa formalidade e é o correto a ser feito.

— Ela foi embora?

Só agora que minha ficha caiu, nossa última conversa era de fato uma despedida.
Carol assentiu com a cabeça.

— Infelizmente. - Carol estava visivelmente triste. - Uma merda porque eu me apeguei demais aquela gringa.

Uma espécie de flashback começou a passar por minha mente e eu me lembrei de cada momento com Lauren e meus olhos se encheram de lágrimas.

— Tais chorando?

Carol percebeu que minha mente estava longe e mesmo que eu limpasse as lágrimas com rapidez meu choro era notável.

— Poxa, Mila. - Me abraçou. - Não fique assim, poxa. Lauren se culpou muito por toda aquela confusão e respeitou sua decisão.

— Que decisão, Carol? Eu não tinha decidido nada.

— Tu falou pra ela te deixar em paz, ué.

— Falei muitas coisas Carol, mas... - Respirei fundo tentando me fazer de forte. - Esquece. Foi melhor assim. Pelo menos posso tentar voltar a ficar bem com mãe.

— Ei. - Carol segurou meu rosto. - Sabes que não foi certo o que Simone fez, não sabe? Esse não é o papel de mãe, Camila. Entendo que a cabeça desse povo daqui é dura demais, mas sua felicidade está acima de todas as coisas e ela como mãe deveria ter isso em mente. Se as atitudes de sua mãe te machucam, algo está errado.

Meu peito estava tão apertado que mal conseguia respirar, me afundei no abraço de Carol e fiquei por ali até meu choro se cessar.

— Acho que é melhor você entrar, ajudar sua mãe assinar os papéis e ler seu contrato. Tendo tudo assinado me leve lá na fazenda e volte a trabalhar. Esmeralda está sentindo sua falta viu? Fique bem, Mila.

Definitivamente as filhas de Domingos eram seres iluminados e apaixonantes.
Aceitei à proposta e uma nova fase de minha vida se iniciou. 

Música referência:

TropicanaOnde histórias criam vida. Descubra agora