Capítulo 98 - Coração

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Quatro corpos jazem no chão da caverna obscura. Um deles, respira tranquilamente, em um sono profundo, imemorável. O som das gotas pingando e o sibilo discreto do vento são os únicos sinais de que aquele lugar sequer existe.

De um círculo mágico, desenhado na parede, surge uma névoa escura que preenche todo o salão. Conforme avança, o centro da neblina se condensa com uma forma aproximadamente humana. Ele abre enorme olhos amarelos e anda de forma sinuosa.

_ Srta. Edisia. _ Ele para ao lado do corpo da Bruxa esviscerada _ Como o Gato, não tenho emoções, mas creio que seja adequado dizer: "Que pena". _ Ele se afasta.

Com suas pernas felinas, ele para em um ponto específico do salão e chama por um nome desconhecido e irreconhecível. A mesma boca fantasma que anteriormente havia devorado Amadeo se materializa diante dele. O Gato diz:

_ Agradeço em nome de nossa mestra pelos serviços prestados. _ Uma reverência _ Eu levarei a criança agora.

A maldição grunhe e afasta os dentes. Com a língua fantasmagórica, ela cospe Amadeo, desacordado, com a pele macerada e cheia de pequenos cortes. O Gato fareja ao redor do rapaz e o palpa algumas vezes, verificando que, felizmente, ele ainda está vivo. Com algum esforço, as "mãos" dele se tornam sólidas e ele ergue Amadeo apenas o suficiente para arrasta-lo dizendo:

_ Pesado... Como é enfadonho ser uma entidade imaterial em momentos como este...

Após muito tempo, o Gato chega ao portal mais uma vez, levando Amadeo consigo. Antes de partir, porém, ele diz:

_ Passado, passado, deixado para trás, escondo a verdade... Destruo a memória deste lugar. _ A fumaça que o compõe se espalha por todo o local até tornar-se uma poeira fina _ Dessa forma, feitiços de retrocognição não poderão nos ver.

Ele atravessa a porta mágica. Em um instante, ele se vê diante de um castelo à beira de uma planície recoberta de arbustos intensamente floridos. Pétalas vermelhas, roxas e brancas formam um tapete nos intermináveis caminhos de lama negra. O céu é lilás e verde-água, transbordando estrelas multicoloridas.

O interior do castelo é ricamente decorado com formas arquitetônicas inusitadas e surreais. Uma mistura de arcos, abóbodas, murais, vitrais, pilares, degraus e várias outras estruturas compõe o arranjo digno de um sonho. Conforme o Gato avança, novos criados, pequenas bonecas abobalhadas, se aproximam e assumem o fardo do rapaz inconsciente.

O Gato retoma sua forma felina e sobe as escadas de forma ágil. A porta da qual ele se aproxima, é de madeira albina, com desenhos que imitam rostos chorando. Antes que ele pudesse bater, porém, a passagem se abre, mostrando o quarto quase vitoriano que o aguarda. Os móveis contrastam com as paredes claras, feitos de uma resina escura e tecidos caros, como seda, cetim, veludo, com tons diversos de roxo, azul e cinza.

Na poltrona, voltada para a janela, encontra-se a mulher de imensos cabelos negros, com uma taça preenchida de um líquido rubro, da mesma cor de seus lábios. A luz violácea do céu reflete em sua pele cinza-escuro. O vestido que ela usa tem mangas largas, leves, com detalhes delicados de renda feita à mão. Suas cores oscilam entre o mais puro branco, quase transparente, e o mais terrível negro absoluto. De joelhos no chão, segurando um jarro com a mesma bebida escarlate, está mais um servo feito de escuridão e panos.

Ela suspira e bebe um gole de sua taça. Ela dedilha a margem do vidro, produzindo um discreto som, comparável a uma lágrima de dor. O Gato avança um passo, pousa a cabeça rente ao chão e aguarda até a voz da mulher conceder-lhe a permissão da fala:

_ Bem-vindo ao lar, Gato. Por favor, me conte no que está pensando.

Com essas palavras, ela muda sua postura na cadeira, pousa a taça na bandeja prateada e aguarda. O Gato se aproxima dizendo:

_ Minha Mestra... Obrigado por me conceder um momento em sua presença. Trago notícias de Albam e Flavi.

A mulher faz um gesto, indicando para o Gato continuar. O som de algo sendo arrastado no chão de carpete chama sua atenção, mas ela não olha para trás. O servo ao seu lado arregala os pequenos olhos de boneca. O Gato continua:

_ Em Flavi, Ayla conseguiu desestruturar a Unidade do Mar do Norte e enviou um imenso carregamento de partes de monstro. Temos componentes suficientes para produzir grande quantidade de Golens. Aguardamos suas ordens para começar a produção de seu exército, minha Mestra.

_ Ótimo. _ Ela balança a cabeça _ Prossiga por gentileza.

_ Em Albam, Edisia foi morta há aproximadamente 13 horas.

_ Uma notícia terrível... Primeiro perdemos Miriam; agora Edisia. _ Ela suspira, entrelaçando os dedos _ Quantas crianças a mais eu terei que perder, Gato? _ Ela pousa a mão no coração _ Me diga, ao menos, o quanto ela avançou?

_ O progresso recente foi bastante satisfatório. Ela efetivamente maturou uma fenda e foi capaz de direcionar a energia do "Vazio" para suas criações. Contudo...

_ "Contudo"? _ Ela ergue as sobrancelhas.

_ As fendas de Edisia também foram destruídas durante o combate e a poção de imortalidade que ela vinha destilando foi perdida. _ O Gato baixa o rosto.

_ Hm... Isso é ainda pior, pois quer dizer que humanos dominaram artes proibidas... Perturbador. _ Ela acaricia o próprio rosto, pensativa.

_ Certamente, minha Mestra. Felizmente, o homem que destruiu o portal foi eliminado. A abominação não, porém...

_ Ah, que pena. Ele está sendo muito mais problemático do que eu havia previsto. _ Ela se levanta, ainda de costas _ Há alguma boa notícia para mitigar essa tristeza, Gato?

_ Sim: Edisia conseguiu capturar a criança. O momento me pareceu oportuno. Eu o trouxe para que a senhora o envie para "aquele" lugar, Mestra.

A mulher se vira. Seus olhos são de um azul vibrante, com rajadas tendendo ao cerúleo e ao púrpura. O sorriso que ela traz no rosto é legítimo.

_ Você deveria ter dito isso primeiro, Gato! _ Ela se afasta da poltrona e caminha na direção do corpo de Amadeo que jaz no chão _ Lindo. Maravilhoso. Estou muito contente. Edisia superou minhas expectativas. Mesmo após a morte, minhas filhas-servas nunca deixam de me surpreender.

Ela o fita demoradamente, como se apreciando um troféu antes de colocá-lo no pedestal. Com um gesto, ela faz o Gato levitar para perto de si e o acolhe em um afago gentil, dizendo:

_ Leve-o para a câmara inferior. Eu descerei em breve para começamos.

O Gato salta de seu colo e confirma a ordem, sem relutar. A mulher se baixa e acaricia as bochechas do rapaz desacordado, depois seus lábios trêmulos. Ela diz:

_ Só é uma pena que ele ficará "naquele" lugar mais tempo do que planejado. Qual será o efeito de horrores excessivos nesta criança? _ Ela se levanta, voltando-se para a poltrona _ De um modo ou de outro, outros humanos farão tudo para recupera-lo o mais rápido possível; a abominação também. Sim, certamente. _ Uma pausa; os lábios vermelhos são tomados por um amplo sorriso _ Por ora, nós esperamos.

_ Sim, minha Mestra. _ O Gato diz _ Suas ordens são absolutas, grandiosa Bruxa maior. Morreremos em seu nome; nossas vidas pertencem a ti, Daemon Cordis.

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