Alguns dias antes da publicação da carta pública e a invasão do castelo das Bruxas, Fumio e Keisha se encontraram para acertar alguns detalhes do conteúdo a ser divulgado. O questionamento mais importante que eles trouxeram à tona era: Revelar ou não como e porque Amadeo está envolvido com o caso. Keisha argumentava:
_ Já vamos tirar a fé das pessoas duma Marescallum Ducis Paragon... Não acho que é uma boa ideia crucificarmos o pupilo dela também. Mesmo que a gente escreva pensando nele como a vítima, as pessoas só vão entender que ele vai lutar pelo lado das Bruxas. _ Ela suspira _ Aí todo nosso esforço pra salvar ele vai ter sido em vão se um humano qualquer resolver mata-lo, sabe!
_ Sim, você está certa. Além disso, não temos certeza do potencial de Amadeo como "general" da Bruxa, não é? Também não consegui definir ainda o que Amadeo tem consigo que o torna ainda mais excepcional...
_ Ué, como assim? Alguma coisa além de ser o "escolhido" pelas Bruxas?
_ Sim. _ Fumio diz, sentando-se ao lado da garota _ Quando eu me apresentei para você, falei sobre meu pressentimento, certo? Que ele é parte de algo grandioso e maléfico...
_ É, eu sei... _ Keisha franze o rosto _ Achei que tava se referindo às Bruxas.
Fumio sorri e procura com os olhos pelas estantes ao redor. Finalmente, ele encontra o livro que deseja e o traz até a mesa. Com uma seriedade fria, ele se justifica:
_ Enquanto estávamos na Unidade de Pesquisa, meses atrás, algumas pessoas reclamaram que, durante a noite, Amadeo estava fazendo barulho. Nós achávamos que era sonambulismo ou alguma parassonia, então eu fui verificar.
_ Ah, Johan me falou disso. Ele disse que o Paragonzinho tem um monte de sonhos bizarros...
_ E é aí que nos enganamos. _ Fumio faz uma pausa _ Enquanto ele dormia, eu me dei a liberdade de assistir um pouco dos sonhos dele... O problema é que não eram sonhos, Keisha. Eram memórias. _ Ele folheia o livreto _ Memórias de uma realidade inexistente, repetindo centenas e centenas e centenas de vezes. Eu vi versões alternativas de todos nós, futuros e passados que não podiam ser reais... Não na nossa "linha" do tempo, pelo menos.
Os dois permanecem em silêncio. Keisha é cética; ela nunca acreditou nessas bobagens de ficção científica de "viagem" no tempo. Somente as Deusas podem habitar o tempo...
_ Depois de ver isso e ficar tão confuso quanto você está agora, eu usei um feitiço de clarividência... O melhor que eu podia conjurar. _ Ele ri _ O problema é que, a cada instante da leitura que eu fazia, o futuro mudava! Você sabe o que isso significa? O "destino" dele é maleável! A única coisa em comum em todas as possibilidades que eu vi eram... as catástrofes. _ Suspira _ Por isso eu disse para Amadeo que queria apoia-lo de qualquer forma possível, e consegui que mantivéssemos contato por correspondência.
_ Deixa eu adivinhar... _ Keisha interrompe _ Você ficou tão curioso e obstinado com isso, que foi atrás de alguma coisa que pudesse justificar essas "memórias" e esse "destino maleável" e aí achou as ladainhas do Hieronymus Hier sobre aquela "Teoria do Anjo da Guarda".
_ Precisamente! Se o sr. Hier estiver certo, alguém que carrega o "Anjo da Guarda" poderia reviver o passado, modificando o futuro. Isso explica memórias inexplicáveis... "Resíduos" gravados nas Esferas de Amadeo sobre existências anteriores. Só precisamos definir o "gatilho" dele. Tenho quase certeza que envolve Johan, mas não consigo ter certeza do que...
_ Mas Fumio, pelo que você tá dizendo, o Amadeo foi e voltou umas centenas de vezes, não?! Acho que você tá é ficando doido, cara. Essa teoria não existe. O Hier nem explicou como que se faz para "evocar", "conjurar", sei lá, o tal do "Anjo".
Fumio ergue os ombros e sorri para Keisha:
_ Que esta seja nossa aposta então!
_ AMADEO!!!!
Johan grita ao aproximar-se o bastante da cratera onde o Paragon definha. Por um segundo, a energia cessa. Amadeo arregala os olhos, como se o mundo tivesse congelado ao seu redor... Ele se volta para trás e vê, pelo mais ínfimo instante, a silhueta de Johan se aproximando; sua expressão é de medo, dor, mas também de alívio. Ele expira devagar; o turquesa de suas orbes brilha uma vez mais.
Conforme Johan inicia um chute, a calamidade de energia aflora de forma instintiva, como autodefesa. A perna de Johan acerta a cabeça de Amadeo logo abaixo da orelha, sobre o arco da mandíbula. Enquanto os raios se alastram e depois convergem, a Aberração consegue, de maneira inexplicável, enterrar o rosto do Paragon no chão.
Ele não sente qualquer dor quando seu corpo é desintegrado.
Amadeo desmaia.
Keisha grita. O terror estampa seu rosto jovial, enquanto assiste fumaça ascender. Os poucos presentes que vivenciavam o colapso de um Demônio reagem das mais diferentes formas: Alguns caem de joelhos; outros recuam; a minoria corre na direção das vítimas do caos.
_ Ele tá vivo...
Um dos socorristas exclama, enquanto palpa o pulso de Amadeo com algum receio. No mesmo instante, outro que segue junto pousa um selo de nulificação em seu peito, para evitar novas catástrofes. Ele parece dormir, sereno como uma criança.
_ Este aqui... não...
Pouco restava do corpo da Aberração. Boa parte dele foi obliterado pelos raios de energia catártica. Dessa vez, os Ciiontes não poderiam lhe salvar. Seu destino está concluído nessa realidade, mais uma vez...
O Paragon é levado para uma das tendas que socorrem os feridos. Os Veneficus presentes se apressam para preparar o feitiço capaz de selar todo aquele poder a sete chaves. As palavras de Keisha, porém, trazem lágrimas aos olhos de todos:
_ Isso não é justo!!! Por que é que ele teve que morrer?!?! Por vocês...!!! _ Ela soluça _ É tudo, TUDO!, culpa de vocês!! E das suas burocracias e regras estúpidas!! V-Vocês que deviam ter morrido!! Não ele... Nãããão!!!! _ Ela soluça _ Vocês quase mataram ele várias vezes e agora ele se matou pra salvar vocês!!! Eu NÃO aceito isso...!! Não é justo! Não é! _ Ela demora para retomar o fôlego _ Tudo que ele fez até agora foi pelos outros!! Foi pelo bem do Amadeo!
Amadeo sente os ombros doloridos e pesados. Aos poucos ele consegue separar as pálpebras, desperto pelos gritos próximos de um choro compulsivo:
_ Foi tudo pelo Amadeo! Ele me falou!! E agora eles não vão nem poder se ver!!! Não é justo!!!! Aaaa...! _ Ela baixa a voz, cobrindo o rosto _ Ele é só um menino... Ele não é mal... nunca foi... Johan...
O coração de Amadeo erra as batidas. Está acontecendo de novo. Os gritos de luto, o cheiro de queimado, a dor psíquica... é tudo tão familiar. É a milésima vez que ele se viu naquela posição.
Com dificuldade, ele se levanta da maca. Sua expressão é a mais pura tristeza:
_ Eu matei Johan de novo... não foi?
De novo.
Alguns dos presentes se assustam ao ouvir a voz do rapaz e se adiantam na direção dele. Entretanto, como se vendo o mundo se desfazendo diante de seus olhos, ele alcança uma tesoura no kit de primeiros-socorros ao lado de sua maca improvisada.
"Eu matei Johan de novo", ele pensa, atravessando a própria garganta com a lâmina romba.
A dor é inimaginável, mas irrisória depois que ele ateia fogo no corte sangrante. As chamas se alastram para o interior de seu corpo, consumindo o ar de seus pulmões e o pesar de sua existência.
Entre exclamações e prantos, ele sente a vida esvair.
Rapidamente, sua vista se torna negra; tão negra quanto o "Vazio".
Antes, porém, que sentisse medo da escuridão, uma calorosa luz dourada lhe rouba os olhos, clareando um salão helênico e futurista.
Pela milésima (ou talvez mais) vez, ele chega ao Limite do Tempo.
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Três Esferas
FantasyAmadeo é um jovem de 20 anos, com uma espada presa à cintura e um insaciável desejo de liberdade... O fardo de seu título e o peso de sua capa não o deixam esquecer desse destino que ele jamais escolheu. Porém, o que ele não sabe é que seu mundo de...