117. As coisas ficam ruins antes de melhorarem

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Era uma sensação familiar, como uma memória gravada na pele, mesmo que você não consiga se recordar da primeira, ou da segunda, muito menos da vigésima, vez que a sentiu. A areia estava úmida debaixo dos meus pés descalços. Era estranha a sensação do calor do dia quente, mas do indistinguível gelado da areia molhada. O sol que tocava meu rosto, assim como a brisa suave eram sensação prazerosas também, mas os motivos dos meus olhos não conseguirem se desgrudar dos meus pés fincados na areia da praia aquele dia, eram muitos. E sinto que seria injusto da minha parte não relatá-los da melhor forma possível.

Mas para isso, acho que temos que voltar um pouco no tempo.

Lembro do cheiro do feijão no fogo e do barulho irritante da panela de pressão, que insistia em me atrapalhar de ouvir o desenho que passava na televisão. Lembro bem da minha irmã me perturbando o tempo inteiro para mudar de canal, e de como tudo aquilo mesmo muito irritante no momento que acontecia, se tornou um espaço de consolo e abrigo em minha mente. O que veio a seguir, no entanto, continuaria sendo motivo dos meus pesadelos por muitos anos a seguir.

"Carlinhos, vai comprar cigarro pra mim!" falou meu tio de um algum lugar da casa. Ele não era um bom homem e estava sempre ali, querendo alguma coisa da minha mãe. Como se não tivéssemos pouco o suficiente para ainda ter que dividir com esse porco alcoólatra.

Tentei ignorar a voz dele e seu pedido, e continuar assistindo meu desenho enquanto Cláudia brincava de bonecas no chão ao meu lado.

"Carlinhos!" ele gritou, dessa vez aparecendo na porta que dividia os cômodos, me encarando com os olhos furiosos. Eu suspirei cansado, e hoje em dia, entendo que também resignado, e aceitei meu destino.

Estava cansado de gritarias e não queria que ele começasse com suas palavras baixas e feias direcionadas a minha mãe e muito menos que Cláudia tivesse que ouví-las de novo e de novo. Com isso, me levantei sem vontade do meu espaço no chão e com um sorriso amarelo, entreguei o controle da televisão para Cláudia, que me olhou contente, já mudando de canal.

"Dinheiro," falei sem vontade, esticando meu braço em direção ao meu tio, que nessa hora já tinha um sorriso satisfeito em seu rosto. Eu não podia esperar o momento de ser grande o suficiente para não ter mais que ver o rosto estúpido do tio Genilson.

Ele me entregou algumas notas amassadas e atrás do seu corpo, minha mãe me encarava com olhos tristes, de quem pede paciência. Eu sabia que ela odiava aquela situação assim como eu, mas apesar do jeito abusivo e de vícios do meu tio, ele às vezes trazia algo de comer, pagava uma conta ou outra e ajudava quando apenas os meus bicos não eram o suficiente para trazer comida para dentro de casa.

Até hoje me arrependo do olhar raivoso que enviei para minha mãe sobre os ombros do meu tio aquele dia. Sei que tenho a justificativa da idade para não entender completamente o contexto da nossa vida naquela época, mas também sei que aquela expressão foi a causa de muita tormenta da minha mãe nos meses que se seguiram.

Andei em passos lentos até o bar da esquina, eu não tinha pressa alguma em voltar. Parei para falar com alguns colegas que estavam pelas ruas. Lembro até de ter brincado com o Caramelo, um cachorro de rua que era basicamente cuidado por todos da vizinhança. Foi desse jeito, sem pensar que nada pudesse ficar pior, que a minha vida mudou completamente. Eu não saberia naquele momento, mas não só a minha.

Tudo foi muito rápido e agressivo depois que a polícia chegou. Por mais que eu tente lembrar, a maior parte das coisas são só flashes desse dia, o que o meu psicólogo diz que é uma forma da minha mente me proteger. Faz sentido às vezes, mas outras, eu não entendo como a minha mente não conseguiu me proteger de outras lembranças dolorosas. Como, por exemplo, do rosto contorcido de dor da minha mãe ao me ver algemado junto dos piores tipos da rua. Do choro em prantos da minha irmã mais nova, que ainda tinha em suas mãos pequenas o controle remoto. Da cara inabalável do meu tio, como se nada daquilo o afetasse.

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