Respiro fundo ao acordar, acordo feliz pelos recentes sonhos que tive e o sorriso está inevitável em minha boca, antes até que eu abrisse meus olhos. Mas o dia lá fora não parecia assim, as nuvens estavam carregadas, o vento trazia o presságio da tempestade mas o sol ainda estava ali, ainda que sendo ofuscado pela escuridão. Mal posso despertar e antes que eu pudesse me espantar com o horário e com a data especial que era hoje, outro fato fora do quarto me faz espantar com um barulho alto e nada suave. Aos poucos, ao me concentrar a ouvir, posso sentir a péssima nostalgia que foi ouvir todos aqueles barulhos de novo desde aquele dia e tenho a mesma reação destemida ao enfrentar a palavra maior da casa.- Vocês precisam aceitar a filha que vocês têm. Eu sou ela desde quando eu nasci e não custa a vocês reconhecer a minha identidade! - ouço isso aos berros ao aparecer escondido na porta, Josephine exigindo seus direitos de ser respeitada mas pelo jeito sendo negada. Nunca havia a visto daquele jeito, confiante ao cobrar e tão firme nas suas palavras, sinto um pouco de culpa porque não ter a reconhecido como a tal desde que era uma pequena criança, mas até então acredito que ela não tinha ciência disso. Fico feliz por ela ter me contado talvez quando se deu conta mas era arriscado se declarar dentro de casa mas também um ato de coragem tremendo, como só ela poderia ter.
- Você não pode ousar garoto, profanar dentro de minha casa e achar que pode ser outra pessoa. Você só pode ter algum tipo de transtorno de personalidade ou perdeu totalmente a função cerebral. - papai disse agora com mamãe se mantendo de braços cruzados, assertiva, e apoiando toda aquela cena. Tudo que eu podia sentir era revolta, culpa, desolamento, sentia o teto do lar e suas regras de respeito e união entrarem em completa erosão e desabavam por falhar em acolhimento e amor à própria família. Até que eu saísse do quarto, distante mas o suficiente para ver toda a situação pavorosa, eu pude presenciar a cena mais horrível que já vi na vida, arrancava de mim lágrimas e a Josephine, parece arrancar deles, o coração fora, tamanha era a sua revolta para com ela. No seu aniversário de 18 anos, Josephine, que gritava, chorava e soluçava que mal podia exercer todos ao mesmo tempo, era arrastada enquanto se debatia para se livrar das mãos que a agarrava desajeitadamente e que feriam a sua pele, a sua carne, a sua alma e a sua dignidade, prestes a ser descartada e enxotada como uma lata velha. Me desesperei a acudi-la, correndo, os seguindo e pedia calma, pelo menos que eles a soltassem para que pudéssemos conversar como seres racionais e civilizados. A transfobia e a indignação consumia o interior daqueles seres apodrecidos que eu chamava de família, e seguiam para fora da casa, com eu estapeando eles para que soltassem e parassem com toda aquela barbaridade. A porta ao ser aberta, o céu se compadeceu e derramou o seu peso, lamentavam as nuvens ao presenciar aquilo e a chuva cai sem pena como eles no tratamento selvagem. Foi rudemente arrastada em batidas contra os degraus pequenos de concreto que havia na varanda que arranhavam a sua costela e todo seu corpo ao entrar em contato com o sólido pontiagudo, jogada na grama seca e encharcada, exausta e imóvel como se estivesse morta, porém apenas se recuperando de todo esperneio que esgotou toda sua energia, que ia da sua dor de cabeça explosiva ao seus dedos do pé que estavam raspados pelos pequenos arranhões e formando feridas. Aqui ela oficializa para o mundo, a sua bravura, a sua coragem e sua identidade que já foi aceita e não quer que seja desrespeitada.
- E nem pense em voltar a pisar os pés aqui novamente, Frankenstein ou qualquer tipo de mutação profana que você seja. E Matías, se pretende intervir, sinta-se convidado a ir junto porque falhamos miseravelmente em criar homens legítimos. - ela arremessa suas palavras do alto que ela acredita estar, por eu estar aos pés da Josephine a acalmá-la, sentindo o mínimo de compaixão de socorrê-la, e depois, os pertences da Josephine, prontamente ensacados de qualquer jeito, no intuito de nos acertar.
- Além de viado, quer ser mulher ainda. Não sei que tipo de delírio é esse. Saiba que Deus abomina incesto, homossexualismo e essa conversão que seu irmão diz ser e está se contorcendo de ver vocês dois aí se agarrando. Culpa sua Matías, que nunca foi um homem exemplar mas pensando bem, não te mando embora junto porque você ainda é muito útil para mim. Ignoramos todos os insultos e difamações porque não rebaixamos nosso nível à abaixo da lama e só me importo com ela até aqui. A chuva cessa um pouco mas nem importo até aqui, tudo o que tive de família está bem aqui e que estou prestes a perder e eles batem a porta como se estivessem acabado de ter feito o descarte do lixo para que o caminhão comunitário levasse.
- Eu nem sei o que dizer para você, ou o que fazer para me redimir porque sei que não há volta quando se trata desses babacas, mas Josephine, eu só tenho desculpas a você. Desculpa pelo nosso pai negligente, nossa mãe tão incompetente e por mim, que não tomei atitude de impedir tudo desde o estopim e apenas te consolar agora quando tudo já foi. - ela permanece calada, treme os lábios, e mal posso diferenciar se ela lacrimeja ou se é seu rosto completamente tomado pelas gotas de chuva que correm. Recebo seu abraço reconfortante e não estou preparado para deixá-la ir, enquanto sai um brilhante e inesperado arco-íris que corta o céu por inteiro, levando toda a treva e e escuridão para longe, como se indicasse um novo tempo e uma nova vida. Parece até indevido mas parece revelar um novo momento para a Josephine principalmente, apesar de toda a circunstância que acabou de acontecer e ver a Josephine se levantar e recolher todas as suas coisas, com a minha ajuda e a ver seguir sem destino algum me dói mais do que tudo e aquela foi a despedida definitiva, quando ela seguiu, olhou para trás como se fosse deixar tudo, suja de terra, ferida e disposta a viver a sua própria vida, sem as fantasias que eu a contava porém sabendo que iria construir a sua própria história. Depois daquele dia, me tornei órfão e não tive vergonha de admitir para mim, o pouco que interagíamos era como estranhos de rua porém residentes da mesma casa e queria me desvincular de tudo isso o quanto antes, já que eu não poderia deixar de partilhar o mesmo sangue manchado daquela família.
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Apenas Segure A Minha Mão
RomanceCalvin Minsky é um garoto de 17 anos, promissor mas que ainda não enxerga em si potencial e está afundando em seus próprios dilemas emocionais. Sendo filho único e sem uma figura paterna presente dentro de casa, tem de conviver com sua mãe autoritár...