Capítulo XVIII (parte 2/2)

14 2 0
                                    


Estamos jogados no sofá na preguiça do meio dia e o sol que vem pela janela já aberta faz reluzir nossas peles como de camaleões brilhantes. Tenho uma ideia maravilhosa para "comer" o nosso tempo e me levanto, ele parece confuso mas volto em seguida, com um grande saco na mão, sem tempo para questionamentos.

- Quebra-cabeças? - sinto decepção em seu tom depois de ter identificado as peças no saco.

- Nada melhor do que exercitar seu cérebro enquanto pratica o seu hobbie favorito. - ele capta a mensagem, o meu amor pelos famosos puzzles. Ele se rende e me dá uma chance após eu fazer um semblante insistente (ou apenas implorar incansavelmente e encher o saco dele) enquanto eu esvazio o que está na minha mão, espelhando as peças por todo o chão da sala. Por ter dois quebra-cabeças com peças totalmente embaralhadas, nós separamos as peças pelas cores completamente distintas e aos poucos, algumas partes dos nossos quebra-cabeças vão tomando forma, sem ainda poder identificar o que retratavam. Por ter um pouco mais de habilidade e de paciência inevitável, algumas partes maiores montadas vão me revelando uma paisagem pouco inteligível e sombria, ainda enigmática e relacionada ao preto, com luzes (ou um ponto de luz único). O quebra-cabeça dele vai bem, não tão ágil como avanço e coça a cabeça, vez ou outra, tentando ficar paciente pela peça que ele insiste em colocar em um lugar que claramente não cabe umas 5 vezes.

- Seja paciente. Analise as ligações das pontas e se as conexões fazem sentido. - comento para o aprendiz que ele é mas ele parece insistente à sua técnica não muito aceita.

- Se eu continuar assim, o hospital que vai me ter como um paciente. Por esgotar minha capacidade cerebral com tanto raciocínio, quase como um cálculo mental matemático.

- O raciocínio lógico é bem mais importante do que a força física e a agilidade. - o aconselho novamente por perceber ele, quase propositalmente, encaixar as peças forçadamente onde ele bem entende que elas devam estar.

- Só não vejo sentido em se dedicar a algo tão trabalhoso, que exige um tanto de esforço e você sabe que aquilo terá um fim prévio e só resta a lembrança do quão belo aquilo era. É como num castelo de cartas ou num relacionamento tóxico.

- Ok... não precisava ser tão literal. É só um passatempo que é acessível a todos, tanto em alcance, quanto a facilidade de sua execução. - estou quase finalizando o meu e ele progride bem também, com a minha sábia instrução e já posso identificar que o dele se trata de um animal ou uma criatura, ou uma criatura animalesca ou ainda assim, algo que tenha vida, no mínimo.

Após uns 20 minutos, conseguimos concluir nossos quebra-cabeças, sob tensão por algumas peças que trocamos, que nos faz ficar um pouco mais atentos ao longo do processo e admiramos com orgulho nossas obras montadas. O meu ilustrava um farol aceso com um céu estrelado (daí o preto predominante com luzes) e resquícios de água da onda que colidia contra a sua coluna e o dele ilustrava um Pegasus, sob duas patas, com suas crinas esvoaçantes e suas asas estendidas, prontas para cruzar o céu. Admiramos mais um pouco antes de destruímos tudo, definitivamente a pior parte (em partes, o Calvin estava certo), pior até do que começar a separar as peças e logo elas ocupavam de volta o saco transparente, deformadas e embaralhadas como de início. Nos levantamos para prepararmos o nosso almoço, com o Calvin agora preparado para me auxiliar, já tendo em mente o que podemos fazer.

- Você pode lavar as alfaces e os outros para fazer a salada e requentar o purê de vegetais que sobrou enquanto eu faço o arroz e tempero as coxinhas de frango. - tomando nossos postos e nossas tarefas na cozinha, o arroz já está cozinhando e vou temperar as coxas enquanto o Calvin está separando as alfaces e cortando os tomates, depois de ter os lavado e depois de já ter esquentado o purê. O arroz já está pronto e a salada também, agora estou preparando um molho rosé para acompanhar o frango enquanto o Calvin está os fritando e os colocando em papel toalha para absorver o excesso de óleo, finalizando logo o almoço por completo. Trazemos nossos pratos servidos e frescos para a mesa, ambos usando garfo e não nos contentando em aprovar nossa comida apenas pelo aroma, que podia facilmente ser aprovada sem a necessidade de degustação, partimos para a refeição.

- Estou me sentindo uma miss fisiculturista por ter tomado um copo de água ao invés de um copo de refrigerante, calórico e excessivo em açúcar.

- Do açúcar você pode ter se salvado, agora do colesterol... acredito que "misses" fisiculturistas não têm uma dieta a base de coxinhas de frango, enfiadas e respingando óleo e molho rosé.

- Não enche, Murray. - ele se irrita e rio, com ele colocando uma coxinha de frango na boca mergulhada em molho, sem preocupações.

- Ainda tem sorvete de flocos, minha miss fisiculturista. - faço o seu plano de refeição saudável ir para o brejo, oferecendo uma irrecusável sobremesa, dispensando até o tom de o oferecer por já saber sua resposta.

- Só se for com uvas passas. - ele não resiste e leva os pratos enquanto preparo nossas sobremesas como da última vez com capricho.

- Nada melhor do que um filme depois de um almoço maravilhoso. - digo, sentado no sofá de frente para a televisão, em busca de um filme, depois de ele ter me convencido a escolher um.

- Para você, não há "nada melhor", não é? - ele diz por eu repetir a minha fala de quando fomos montar quebra-cabeças.

- As situações sempre se superam quando se tem a melhor companhia. - digo, sem desviar a atenção da televisão, até encontrar uma boa recomendação.

- Hoje Eu Quero Voltar Sozinho... parece ser brasileiro.

- Interessante, mas essa Netflix só pode estar de sacanagem. Essas recomendações estão muito sugestivas...

- Ah claro, a Netflix recomenda de acordo com as preferências e as pesquisas do consumidor.

- Aff, mas isso não quer dizer nada. - tento mentir com convicção mas não cola pro Calvin.

Pela sinopse, o filme conta a história de Leonardo, que possui deficiência visual, vê a sua amizade com Giovana e tudo o que acreditava, ir por água abaixo com a chegada do novato Gabriel na escola. Lutando pela sua independência de sua mãe super protetora, ele enfrenta seus anseios e suas ideias de cara ao descobrir mais sobre si mesmo, cada vez mais emocionalmente profundo. O filme narra seus temas com sutileza e convivência, as atuações transmitem verdade, principalmente a do personagem principal e aborda o amor entre os personagens com leveza, sem apelação sexual. O modo de como abordam a paixão entre os personagens é tratado de forma cativante e mostra, da melhor forma possível, que nem todo o amor acontece à primeira vista. As lágrimas são inevitáveis após o tão esperado beijo entre os personagens e parecem ainda mais incessantes durante os créditos finais.

- Meu Deeeus! - o Calvin dá um grito com a boca cheia de sorvete e parece ter adorado a experiência.

- Que filme, Brasil! Os homofóbicos brasileiros que lutem para se recuperarem desse tiro. - enalteço com todas as minhas forças essa obra maravilhosa brasileira, que só me faz amar e idolatrar, ainda mais, a rica cultura do Brasil quando o assunto é bom gosto, para todo o tipo de produção. Acalmamos nossos ânimos depois desse baque inesperado e terminamos de tomar nosso sorvete, que não assume mais sua forma sólida por não ter conseguido cativar nossa atenção mais do que o filme. Lavamos nossas louças, também as do almoço e escovamos os nossos dentes antes de nos jogarmos no sofá de novo.

- E quais são os planos para hoje?

- Você quem faz as propostas. Eu só as aceito ou as dispenso. Geralmente elas são convincentes e atrativas demais. Condiz muito com quem as propõe.

- Sei lá, podíamos sair à noite mas o lugar fica a seu critério. - peço por uma sugestão por realmente não ter nada em mente.

- Também não consigo sugerir nada. Rodar com você por aí sem rumo, só pra ver a beleza da lua e toda a luz artificial externa já seria algo. Mesmo que fosse da janela.

- Olha, por aqui tem um ponto alto que tem uma vista linda de boa parte da cidade. Já fui lá algumas vezes e posso assegurar que vale muito a pena. Se quiser... - ele parece se interessar, não se sentindo obrigado a concordar só por mim, ficamos ali à espera do escurecer, jogando conversa fora com os nossos melhores assuntos.

Apenas Segure A Minha MãoOnde histórias criam vida. Descubra agora