Já podemos ver a luz do sol indo embora, dando lugar a escuridão da noite e ao brilho da lua e das estrelas, um pouco mais cedo do que esperávamos. Ou melhor, era o que nós esperávamos, estando do sofá a imaginar o possível tempo lá fora, que escondia as estrelas por trás das extensas nuvens carregadas e a lua, que parecia contida, quase não se via, se não soubessemos da sua existência. Aquela noite estava estranha, mas vamos, mesmo que seja só para apreciar a nossa presença e apenas as nuvens, mesmo parecendo incoerente essa ideia. O Calvin se levanta, pega a toalha que ele usa e segue para o banheiro, eu separo tudo para ele e desço para preparar um lanche para nós. Corto algumas bananas e morangos em uma tábua de mármore e coloco no liquidificador com leite e levo alguns cookies com gotas de chocolate ao micro-ondas. Sirvo dois grandes copos com vitamina e sinto aquelas pequenas e calorosas mãos repousarem entrelaçadas na minha barriga e seu rosto mal alcança meu ombro, podendo sentir seu nariz tocando minhas costas. Ele ainda está de toalha, as gotas deslizavam por suas costas e pelo seu peito, seu cabelo está molhado porém ajeitado, com sua toalha posta na altura do ombro. Entrego o seu copo e brindamos, limpando nossos bigodes de vitamina e terminando nossos lanches, é a minha vez de tomar banho enquanto o Calvin vem comigo para escovar os dentes.- Que tal mais uma vez? Aproveite que ainda está de toalha. - o convido a se juntar a mim, estando da pia e eu, apenas de cueca, de dentro do box. Ele resiste à proposta, apenas virando o semblante e depois voltando sorrindo, não foi dessa vez que uma proposta minha conseguiu convecê-lo novamente. Mesmo com a sua rejeição clara, ainda permaneço com a porta do box aberta caso ele mudasse de ideia mas ele sai primeiro convencido da sua decisão, eu também não demoro muito, partindo também para escovar os dentes para ir vestir a roupa. Faço uma combinação tradicional de preto, o Calvin não está diferente, terminamos juntos a nossa arrumação e nos certificamos no fim, com o reflexo do espelho e com a opinião um do outro. Estamos animados para uma noite que não nos aguarda e nada convidativa, nos precavendo com blusas de frio, de zíper fechado até em cima mas sem pôr o capuz por nossos cabelos ainda estarem molhados. Ao passarmos pela porta, indo em direção a garagem, de repente, o Calvin se apoia ao carro e abaixa a cabeça, seguido de um forte e notório arrepio, tão aparente que sacolejaram levemente seus ombros.
- Tudo bem? - o questiono, levantando sua cabeça e apoia a outra mão em seu ombro.
- Sim, tudo bem. Só tive um mal pressentimento.
- Um grande mal pressentimento, por sinal. Você acha uma boa ideia continuarmos?
- Por mim, tudo bem. Deve ter sido apenas um vento frio. - assinto preocupado por ele ter garantido que foi por eu ter abrido o portão da garagem e acredito nele que seja essa a verdade, entrando ambos no carro.
Toda a atmosfera melancólica e sombria toma conta da paisagem e a cidade parece ser fantasma ou ter entrado em quarentena severa por uma infestação viral global. O caminho até a SS foi assim, as sombras de tudo pareciam formar monstros horripilantes e qualquer ruído parecia ter vida própria, ventava relativamente forte e o farol do carro iluminava o que os postes de luzes não eram capazes de fazer, por estarem quebrados ou defeituosos em certos pontos do trajeto. Chegamos ao Chiwetell Garden, estaciono perto de um dos muitos arbustos por ali e checo se tranquei bem o carro, podendo ter a visão melhor do local solitário e parcialmente iluminado, mas focando nas flores daqui que mantinham a beleza local e arranco uma delas, com dor no coração e a coloco presa na orelha do Calvin. Caminhamos lado a lado até uma subida íngreme que dava acesso até onde queríamos chegar, nos deparando com uma passagem pouca espaçosa, com um barranco, que não era alto mas não hesitamos por seguir por esse trecho. Eu ia na frente para supervisionar o caminho e eliminando o que havia de obstáculo e o Calvin vinha logo atrás, com todo o cuidado que podia, no seu caminhar e no seu olhar e também firmo meu olhar no chão como se ele tivesse poderes microscópicos. Já podemos ver o fim da trilha e o extenso espaço para se caminhar, a empolgação é tanta que corro pelo resto do caminho e por um descuido, tropeço em um toco proeminente, que me faz desequilibrar mas consigo me manter com passos corridos e desengonçados e o Calvin também parece não perceber e também é pego, antes que eu pudesse o alertar mas não se mantém de pé como eu. Ele cai de peito contra o chão mas suas mãos conseguem se apoiar para que seu rosto não machucasse e quase ultrapassa o limite da passagem para o barranco e me apresso a acudí-lo.
- Te peguei!! - agarro ele pelo braço mas não o puxo por ter sido a sua queda quase propositalmente em direção ao barranco. Parecemos aliviados mas o pedaço de terra inconsistente desaba, o carregando junto, fazendo ele cair e rolar por toda a extensão do barranco, por ter soltado inexplicavelmente a minha mão no momento da queda. Nessa hora, eu só queria que o Calvin não tivesse soltado e tivesse me arrastado com ele e sentir a amarga dor de estar com ele aqui, e não o observar, ileso quando era pra eu estar com ele como um corpo moribundo ao seu lado. Eu entrei em completo desespero e não hesitei em descer, com um pouco mais de cautela e delicadeza que o Calvin poderia ter caído, deslizando como em um escorregador, nada habilidoso. Os galhos e a queda machucaram um pouco seu rosto, fazendo arranhões e nossas roupas também não estão em seu melhor estado, mais a dele e agradeço, talvez inapropriadamente, por ter sido poupado pra dar a mínima assistência ao Calvin pois poderíamos ter caído os dois e ter que esperarmos horas por socorro ou por um destino indesejado. Não me cabe estar grato e sim desesperado, levanto seu tronco e apoio a sua cabeça ao meu peito e choro, até a cabeça doer, meus olhos incharem mas nenhuma dor poderia superar a dor da hipótese, da possibilidade de que eu pudesse perder o Calvin, ainda mais por negligência e irresponsabilidade da minha parte. Posso perceber que o tecido da minha blusa está com sangue e só poderia estar vindo da cabeça do Calvin, averiguo com cuidado e percebo o que parece ser, um corte, feito por algum graveto ponti-agudo ou batida em alguma pedra ou objeto sólido durante a queda e seu rosto mórbido ainda repousava em mim, seus olhos não se abriam e não os forçava a abrir, apenas esperando que voltasse a consciência. Ver aquele sangue na ponta dos dedos, na minha camisa e na cabeça dele, era ainda mais agoniante e eu só podia ver seu estado pálido e debilitado, desejando que pudéssemos voltar para casa, sem aborrecimentos e sem ferimentos.
- Por que, Deus? Calvin, se você me ouve, saiba que eu não vou desistir de você e sempre vou dar o meu melhor para cuidar de você! Tudo aconteceu por minha culpa, me culpo sem clemência e não espero que me perdoe pela minha tentativa de aspiração a te proteger. Mas eu só queria que você saiba, Calvin Minsky, que EU TE AMO!!!, apesar de todo o transtorno e contradição que trago para você. - encho meus pulmões ao me declarar e reúno todas as minhas forças restantes dentro de mim mas isso não muda nada na situação atual: seu corpo ainda está imóvel, o sangue está aqui e muito menos o que eu causei a ele mas seus olhos, que antes não piscavam, me observam lamentar e chorar copiosamente. Ele volta a realidade aos poucos e eu enlouqueço ainda mais de emoção, mas sem nos agitar muito, ele tenta falar mas eu o impeço para que não esforçasse tanto da sua capacidade mas relato um pouco do que houve para ele sem ricos detalhes. Ele me pede para levá-lo para casa, falhando as palavras e o levanto com os braços, em posição horizontal, fazendo com que sua cabeça se mantivesse apoiada com carinho. Eu usei uma passagem de degraus que subia para o Chiwetell Garden para subirmos, mas para descer, o caminho por aqui não leva ao observatório e por isso não optei por aqui, não me apressando tanto para não fazer o corpo do Calvin se contorcer de dor e poder confortá-lo de todas as formas. Chego até o carro e ele ainda está intacto (pelo menos, algo que ainda está entre nós), posiciono cuidadosamente o Calvin no banco de trás e verifico se coloquei o cinto de segurança de forma correta para que ele não se desprendesse. Eu dividia a atenção com a estrada e o Calvin, pelo retrovisor e sempre com cuidado na velocidade e como não havia tantos pedestres e um circuito de carros tão agitado, eu sempre inspecionava o Calvin, hora ou outra. Ele se mantinha imóvel, como se estivesse anestesiado, talvez pelo choque do acidente e não dizia uma palavra, e eu preferia que continuasse assim, cuja situação era a única que eu preferia o silêncio do Calvin mas agonizava silenciosamente pela ardência e dor do ferimento.
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Apenas Segure A Minha Mão
RomanceCalvin Minsky é um garoto de 17 anos, promissor mas que ainda não enxerga em si potencial e está afundando em seus próprios dilemas emocionais. Sendo filho único e sem uma figura paterna presente dentro de casa, tem de conviver com sua mãe autoritár...