Era domingo. O dia parecia como qualquer outro domingo de verão ensolarado que eu pudesse viver, a não ser por um motivo: acordar cedo. Minha feição emburrada de olhos caídos expressava perfeitamente o quanto eu odiava acordar cedo, principalmente por acordar e por ser um fim de semana (de fato). Me sento na ponta da cama, com o despertador gritando aquela melodia chata e aleatória porque esqueci de desabilitar o alarme do horário que eu ia pra escola e como se não bastasse esse eletrônico berrando essa melodia de harpa desafinada que só toca uma nota musical, ouço leves socos na porta do meu quarto e em seguida, uma voz.
- Filhooo! Já acordou? - ela diz com a sua voz miada, abrindo a porta e já sei do que se trata, digno de deixar o Hércules chorando na sarjeta pelo pergaminho de favores que ela provavelmente vai me passar.
- Como você pode ver, eu já estou acordado. Mas deve ser uma sessão espírita porque você está falando com a minha alma mesmo, meu corpo tá sonhando ainda embaixo desse cobertor.
- Credo menino, 'tá repreendido. - ela faz o sinal de cruz no rosto e só disse isso porque sei que ela odeia, banca de fiel fervorosa com a fé inabalável mas se arrepia toda se ouve uma conversa de candomblé ou umbanda. - Quero que você vá ao mercado e me traga essas coisas. - ela me estende um pedaço de papel, que continha os itens da compra e leio sem assentir.
Me levanto e ela me entrega uma quantia em dinheiro, que coloco no bolso e sigo para o banheiro enquanto ela sai porta afora do meu quarto. Fazendo minhas higienes pessoais, é de costume que eu reflita e debata tudo o que eu vivencio e me aconselho ao que eu devo ou não fazer, com o meu eu cirúrgico e sensato, mas hoje não cumpro essa minha parte matinal por motivos de mal humor e não querer pôr o pé para fora de casa essa hora da manhã mas me obrigo a sair pelo bem da minha liberdade, mesmo estando saindo para cumprir uma ordem. Visto uma roupa qualquer que faça uma mínima combinação, arrumo meu cabelo do mesmo jeito de sempre e forço um sorriso antes de descer as escadas, sentindo que possa ser um bom dia, espremendo um pouco de empolgação de mim. Pego os meus companheiros de ouvido, junto ao meu celular e uma maçã antes de sair de casa para não desmaiar na rua mas logo, levo uma advertência por querer me alimentar (que isso gente, um esconderijo de cativeiro?)
- O que pensa que está fazendo? Estou com muita pressa e não tenho tempo sobrando! - diz ela, nunca cortês e desisto antes mesmo de pegar a maçã, coloco meus fones e saio sem nem olhar para ela.
Costumo dizer que os fones de ouvido são uma parte removível do meu corpo, desde sempre amei ouvir música e de dançar, por ela ser tão versátil e tão diversa; você ouve para cantar, para dançar, para ficar feliz, para chorar, ouve no chuveiro, para fazer uma faxina, se exercitando e para outras infinitas finalidades e aproveita dos melhores gêneros e dos melhores artistas de cada segmento musical. Tentando despertar um pouco de empolgação e disposição dentro do meu ser, recorro ao tratamento medicinal da minha playlist e seleciono o aleatório mas em contradição, Fall, do James Arthur, é a escolhida por aquele sistema que só quer me boicotar. Minha tentativa de andar por aí no ritmo de uma música agitada, estalando os dedos em ritmo de uma boa batida e saltitando como uma gazela em período de reprodução vai por água abaixo, sem contar esse céu com nuvens que parecem mais fumaça de queimada florestal de tão escuras que, parcialmente cobrem o céu e o sol, que pelejava para transmitir um raio solar que fosse. Mesmo ainda perto de casa, me arrisco a sair sem nenhum agasalho ou guarda-chuva, com as mãos no bolso e com o sopro do vento me arrepiando e ameaçando trazer a chuva.
Já quase na metade do trajeto, posso ver o horizonte e sentir em algumas partes do meu corpo, minúsculas cutículas de água que agora, eram incapazes de me molharem mas a minha pele era sensível ao toque e era capaz de sentí-las e que não irão tardar a duplicar a sua 'massa', tomara que pelo menos, eu esteja a porta do mercado porque ninguém merece voltar para casa como uma capivara nadadora. Entre meus praguejamentos mentais, me pergunto o porquê diabos esse mercado ficava tão longe, quase uma travessia de divisa à nado para chegar, e sinto uma gota atingir meu olho quando olho para alto. O que eu temia está prestes a acontecer e apresso os passos na tentativa que adiantasse algo mas acho que não vou escapar da tempestade, a menos que eu me esconda embaixo de alguma armação de loja ou dentro de uma, ou na casa de alguém desconhecido (olha ao que eu vou me submeter por alguém que não merece esse meu sacrifício, apesar de eu estar fazendo isso por mim e não vai reconhecer o meu esforço e ainda vai dizer que demorei por pura má vontade e preguiça).A chuva se intensifica mais rápido do que eu esperava e agora, a hipótese de pedir abrigo no lar alheio se torna a minha única oportunidade, já que não há um lugar sequer para me resguardar e a chuva cai grossa e intensa, sem piedade do corpo seco e desprevenido que vinha.
Depois de desviar toda a minha rota para o mercado, estou à porta de alguém, nada confiante mas a chuva intimidadora me força a dar singelas, porém ouvintes batidas na porta, que demoram a ter retorno em forma de resposta. Desisto e até me viro de costas mas um mínimo ruído do lado de dentro me prende a atenção, que se assemelhava a passos e em seguida, barulhos na porta, finalmente para me atender (me permitir entrar vai ser outra história). A maçaneta gira e meu corpo estremece e gela, talvez seja pelo frio presente aqui e a porta se abre, aos poucos, revelando uma figura masculina a minha frente. Minha postura paralisa e minha garganta na consegue proferir um suspiro e meus pés molham com as gotas que respingam no telhado e escorrem, formando pequenas cachoeiras.- Posso ajudar? - ele interrompe a minha avaliação a sua fisionomia e me traz de volta do transe com cara de bocó.
- O-oi! - não consigo dizer nada além dessa sílaba e ele me convida a entrar, sem me conhecer, apenas na intenção de me proteger da chuva. Tiro meu chinelo ensopado e adentro a sua casa, com a porta sendo fechada logo atrás de mim, e o agradeço pela recepção. Assim que esse temporal se apaziguar, irei me retirar e o agradecer novamente pelo seu ato de caridade, mas enquanto o caos se forma lá fora e que está longe do seu fim, vou aproveitar uma boa conversa, longe da chuva e devidamente abrigado.
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Apenas Segure A Minha Mão
Roman d'amourCalvin Minsky é um garoto de 17 anos, promissor mas que ainda não enxerga em si potencial e está afundando em seus próprios dilemas emocionais. Sendo filho único e sem uma figura paterna presente dentro de casa, tem de conviver com sua mãe autoritár...