xxv. DARKNESS

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...



Ele já tinha todo o controle do meu corpo até então. Ele era o início, o meio e o fim, ele era eu e eu não era ele, mas ele era eu. E esse era o problema.

Até alguns dias atrás, ou anos atrás, ou séculos, já tinha perdido o senso do tempo presa dentro da minha mente, eu lutava contra ele. Eu tentava gritar. Tentava arranhar. Tentava achar algum jeito de soltar aquela coleira que me prendia a ele, tentava achar um jeito de fazer com que alguém percebesse o que estava acontecendo.

Mas ele era forte. Ele era antigo. Ele tinha participado da guerra de outro mundo e por sorte foi chamado de volta, antes de ser consumido pelo fogo dela.

Esse demônio fazia questão de mostrar para mim tudo o que fez na outra guerra, passando cada memória bem devagar para a minha mente, me fazendo sentir tudo o que ele sentiu enquanto torturava humanos e se alimentava de seu medo.

Ele me fez sentir isso tantas vezes que, quando ele começou a torturar e a matar feéricos aqui, eu senti aquele prazer doentio. Eu lutei muito contra isso, contra esse sentimento, mas estava cansada demais para continuar, cansada de gritar até minha garganta sangrar e mesmo assim não sair nenhum som, cansada de sentir meu corpo levemente fraco por conta do cigarro que ele se recusa a tragar, cansada de me sentir violada a cada segundo e a cada momento. Eu estava simplesmente cansada.

Então permiti que ele tomasse o controle total. Permiti que ele me fizesse sentir bem enquanto estava cortando pessoas que, em outra vida, eu conhecia. Permiti que ele abusasse de meu corpo para satisfazer a sua mente em cômodos escuros. Permiti que ele torturasse as minhas sombras para que elas parassem de resistir.

Eu já não tinha esperanças de ser salva por aqueles que agora eu nem mesmo lembrava mais o nome. Ele havia tomado todos os nomes, inclusive o meu.

E com os nomes, ele engoliu as lembranças boas para algum poço sem fundo da minha mente e adora repetir as más. Ele se alimenta delas, aprendi isso observando.

E agora esse demônio tinha afrouxado a coleira, mas era só porque ele sabia que eu não lutaria mais. Que eu nunca mais lutaria. Principalmente quando ele estava falando com a tenente.

Aquela vadia. Ele a achava uma vadia, então eu também comecei a achar.

Ela deveria me proteger, mas não fazia nada para evitar enquanto eu sangrava desesperadamente de dentro para fora, enquanto eu chorava, enquanto eu rugia.

— Eu não posso colocar o anel nela, ela está grávida pelo amor do Caldeirão — a tenente murmurou para mim, para o demônio, em seu quarto cheio de proteções naquela casa que eu já não reconhecia mais.

A voz dele se agarrou na minha mente, a chamando de feérica tola, de fraca, mas ele não tinha coragem de dizer isso em voz alta, não quando ela era protegida do tal comandante.

— E essa gravidez é a única coisa que a está se mantendo calada — a tenente continuou, aqueles olhos tão ... indescritíveis eram um lampejo na minha memória trancafiada pelo demônio, era a única coisa que ele não conseguia corromper.

— Deveríamos mata-lá antes que se torne um problema — ele disse com a minha voz, com a minha boca. Eu nunca iria me acostumar com isso, mesmo desistindo de lutar.

— Já matamos gente demais em pouco tempo, aquele ritual voltou a atenção deles pra gente — fraca a voz dele ecoava pela minha mente.

— Se não fizéssemos o ritual, deixaria uma ponta solta no plano do nosso rei — o demônio a respondeu, enquanto aproveitava do meu desespero com aquele tipo de conversa para se alimentar dos meus próprios sentimentos.

— Como se eu precisasse comer aqueles corações nojentos para me tornar mais forte do que cada um deles — a tenente fez uma cara de asno, o nojo percorrendo o corpo dela. E o meu. O demônio não me deixou apagar a memória de quando ambas mastigaram cada parte daquele coração cru e sangrento, da maneira que deslizaram suas lâminas sobre os corpos, desenhando marcas nos mortos que deveriam descansar em paz. Ela já se agonizava com as mortes que o demônio a fazia assistir, mas aquela foi brutal, trágica, e ela nunca chorou tanto após se obrigada a sujar suas mãos com aquilo.

— Se o comandante disse, então você precisa fazer — o demônio lembrou a tenente, que já estava a muito desviando dos planos originais e formulando os próprios para conquistar o que lhe havia sido proposto.

— Estou ciente, Vicius — ela afirmou duramente, ressaltando o nome do demônio na linguagem feérica, nome que se dissipou na minha mente apenas alguns segundos depois.

Eu não podia saber de nomes. Nunca.

— Temo que tenhamos outro problema além da anã — o demônio disse com certo tom de humor, como se aquela passagem de relatos diárias deles fosse algo casual, que, mesmo odiando a feérica na sua frente, ele se divertia em fazer aquele serviço com ela — Aquela sacerdotisa é uma das exiladas, ou vem de uma família de exilados.

O rosto da tenente se contorceu todo com a questão levantada, dúvida e espanto brilhando em seus olhos.

— A maioria dos feéricos de Prythian são descendentes dos exilados, menos os Grão-Senhores e algumas famílias nobres — ela alegou — Além do mais, não tem como ela estar viva a tanto tempo.

Ela não tinha permissão nem mesmo para pensar naquele assunto, não depois que o demônio percebeu que ela estava juntando as peças daquele quebra cabeça rápido demais. Agora a cabeça dela era um eco vazio que repetia apenas dor, tristeza e sofrimento.

— Para uma princesinha, você não estudou muito a história do seu continente — ele repreendeu.

— Não tive muita oportunidade não é mesmo? — ela retrucou.

O demônio poderia facilmente arrancar a língua dela por isso. Facilmente não, mas ele gostaria.

— Eu sei de tudo isso, fêmea, mas ela vem de uma linhagem específica. Uma linhagem que nunca aceitou sair de Erilea, que nunca se permitiu esquecer do mundo de que vieram. Eles viveram isolados desse mundo por muito tempo, vivendo como se ainda estivessem lá, mas agora acredito que aquela exilada seja a última deles.

— Trágico — ela murmurou, os olhos de que eu não conseguia mais esquecer brilharam em contemplação — Vamos ter que levá-la ao encontro do Além-Mundo ao que parece.

Aquilo era uma sentença de morte, sabia disso pois o demônio dentro de mim se exuberou de alegria com aquela ideia.

E então os dois, um deles utilizando a carcaça do meu corpo como disfarce, planejaram o que faria a seguir. E mesmo sem conseguir se lembrar, mesmo que tivesse desistido daquele mundo, ainda conseguia sentir pena dos que estivessem contra eles.

E a escuridão - o demônio - se deliciou com aquele sentimento.

DARK PARADISE; tog + acotarOnde histórias criam vida. Descubra agora