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Sayuri


Vim pro plantão preocupada com a minha irmã, não vou negar que me arrependi de não ter ido lá, ver como ela estava com os meus próprios olhos. Tentei ligar quando tava no ônibus, mas deu desligado. Deixei o celular no meu armário, não posso ficar desperça, ainda mais hoje, que vou pra pediatria. Tanta criança bonita, sabe ? Todas, sem exceção.

XxX - Tu vai ficar com essas crianças retardadas Say ? _ disse com desprezo.

Sayuri - Vou sim, são pacientes como todas as crianças dessa ala, agora tu me dá licença, que eu tenho que trabalhar, zero condições de papinho furado.

Saí puta de perto dela, gente como essa mulher tinha que ficar exilada, entendeu ? Sem direito nenhum de voltar a se adaptar a sociedade.

O que eu mais vejo quando tô nessa ala, são as mães, pais são raros aqui. Esses covardes abandonam as crianças quando descobrem que tem alguma coisa, que pra eles, é fora do normal.

Homem é assim cara, amam mostrar o que saiu do saco deles, mostrar uma criança "fora dos padrões", é a mesma coisa que dizer que eles não sabem fazer filho direito. Sei que é horrível ler isso, mas a cabeça de alguns funciona bem assim.

Admiro muito as mães desses anjinhos, porque em muitas das vezes, são elas por elas pra cuidar da criança. A "família" diz que aceita, mas o preconceito é notório no modo de tratamento, sabe ? É como se a criança fosse um nada, uma coisa por obrigação, fico puta com isso.

Tem umas que são novas aqui, a maioria, eu acho, das que eu cuidava desde bebê, só uma ficou, quando ela chegou, eu já tinha dois anos aqui no Albert, acabei pegando carinho, parece até que é minha parente.

Mãe da criança - Olha filha, tia Say! _ disse e a garotinha sorriu pra mim.

Sayuri - E essa mocinha ? Tá se comportando ?

Mãe da criança - Tá, tudo na santa paz, reagindo aos poucos ao novo tratamento.

Sayuri - Fico feliz que tu tenha conseguido a permissão pra tratar dela aqui.

Mãe da criança - Se não fosse meu namorado, eu nem sei o que seria de nós, ele tem um conhecido que mexe com essas coisas, rapidinho conseguiu pra mim.

Sayuri - Gente boa ele, que bom!

Mãe da criança - Sim, tu se importa de ficar sozinha cuidando dela ? Tô cheia de fome, queria descer pra fazer um lanche.

Sayuri - Pode ir lá _ ela sorriu em agradecimento e saiu da setor. 

Comecei a cuidar da menina, sempre conversando, contando historinha, criança gosta dessas coisas. Fiquei abismada com o que eu vi, fiz pressão e vi a feição dela mudar. Chamei a pediatra de plantão, que fez os exames certos e constatou o abuso.

Terminei de cuidar dela, arrumei direitinho e deixei com a pediatra responsável. Saí do setor correndo, cheguei em tempo ao banheiro e vomitei muito, muito mesmo.

Eu tinha asco daquela situação, porque eu catei a gira todinha, sei quem fez isso com a criança, dá vontade de levar pra casa, cuidar, tirar ela de perto desse agressor, homem asqueroso, desprezível.

Quando voltei ao setor, a assistente social estava presente, junto da mãe e o tal namorado.

Mãe da criança - VOCÊ É MALUCA, TINHA QUE TÁ NUM HOSPÍCIO, TEU LUGAR É LÁ, ELE JAMAIS FARIA ISSO COM A MINHA FILHA! SUA NOJENTA, MENTE SUJA! _ esbravejou e quis partir pra cima de mim, o namorado segurou.

Sayuri - TANTO NÃO FARIA, QUE FEZ MINHA SENHORA, SE ELE FOSSE INOCENTE MESMO, NÃO ESTARIA AQUI TENTANDO TE COAGIR PRA DIZER O CONTRÁRIO! _ cruzei meus braços.

A assistente social nos pediu pra acalmar os ânimos, algumas das crianças já estavam agitadas com essa gritaria toda. Conclusão, ele molhou o bolso da assistente social e dos policiais que patrulham aqui no hospital, me "desmentiu" e pra piorar, fui proibida de trabalhar na pediatria, ainda tomei um esporro da minha superior.

Indignada com tamanha injustiça, só tenho a rezar por essa criança, pra que Deus use outra pessoa pra desmascarar esse homem, isso pode não ter dado em nada, mas essa mãe saiu daqui com a pulga atrás da orelha, deu pra ver isso nela.

Fiquei arrasada, pedi um uber pra voltar pra casa, tô tão desnorteada que é capaz de eu ser atropelada no meio do caminho pro ponto de ônibus. Povo tava no bar, ficaram me chamando, neguei, tô precisando ficar sozinha, no meu silêncio.

Fiz uma comida pra mim, comi, tomei banho e remédios pra dormir, não quero perder o sono pensando nisso.

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10/08/2020

Dilema - FinalizadoOnde histórias criam vida. Descubra agora