Catarse

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— Vocês dois, esperem um pouco — pediu Dora, falando diretamente com Fred e Yuri.

Tinham passado a última hora sentados numa roda de conversa, tomando refrescos e ouvindo os problemas uns dos outros, uma atividade comum do retiro, e, para Yuri, das menos agradáveis. Com a dispersão do grupo, a dupla estava indo para o refeitório quando Dora os chamou.

— Você sempre ouve, mas nunca fala nada — disse ela diretamente para Yuri, usou um tom acolhedor ao invés de acusatório. — E eu sei que há muita coisa guardada aí dentro — Dora encostou a mão no peito do rapaz e fez alguns movimentos circulares — que precisa sair. É a única forma de poder encontrar o caminho da paz.

— Eu não tô entendendo — Yuri falou, confuso.

— Você, venha aqui — ela segurou os ombros de Fred e o posicionou em frente a Yuri, meio metro de distância.

— Eu faço o quê? — o playboy perguntou, olhando para a anfitriã.

— Fica parado onde está, você será nosso espelho, que vai refletir o que teu amigo quer ver... Ou melhor, não quer ver — explicou Dora.

Os dois rapazes trocaram um olhar confuso. Fred estava com os lábios cerrados, como quem prendia uma risada.

— Senhora? — Yuri murmurou.

Dora se posicionou no meio dos dois.

— Lembra da dinâmica com Janete? Será a mesma coisa. Fred é toda a mágoa que está em seu coração. É alguém ou algo. E você deve encará-lo e dizer tudo aquilo que vem guardando dentro de si.

Yuri olhou para a mulher em desalento e então falou:

— Eu não vou conseguir fazer isso.

— Vai sim, Yuri. Você precisa disso.

— Você pode tentar... — Fred incentivou em um tom de voz baixo. — Prometo que não vou falar pra ninguém, só pra Guiga — concluiu, brincando para suavizar o clima.

O mais novo balançou a cabeça negativamente, dando alguns passos para trás, hesitante. Eu não sou ator, isso aqui não é teatro!, desejou dizer, mas não conseguia, sua garganta havia trancado e nem isso conseguira vazar de seu cerco. Não havia pressa no olhar da mãe de Lumiar, já Fred o encarava como se quisesse dizer algo.

— Leve o tempo que precisar — disse Dora.

Fred começou a falar alguma coisa, mas a mulher foi rápida em silenciá-lo, proibindo-o de abrir a boca. "Você é apenas um espelho. Espelhos não falam", explicara.

— Eu não vejo ninguém — Yuri falou. — Isso não vai funcionar comigo.

— Você só não quer ver — ela respondeu. — Mas você sabe quem é. A sua maior mágoa. Ele precisa ouvir o que você tem pra dizer.

Yuri balançou a cabeça novamente, frustrado. Não tinha nenhuma fé que essa técnica funcionaria.

— Quem você vê?

Fred. Era o que ele estava vendo, bem ali, na sua frente, completamente entediado. Mas essa não era a resposta que Dora queria ouvir.

— Yuri, ele precisa te ouvir. Ele está aqui pra te ouvir. Quem você vê? — a mulher insistiu.

O rapaz fechou os olhos e respirou fundo, inalando e exalando, concentrando-se apenas na voz de Dora.

— Quem está aí, Yuri? Não pense, fale. Vamos.

— Meu pai! — ele finalmente deixou escapar, para a própria surpresa.

— Então... Seu pai está aí em sua frente. Ele não vai falar nada, ele só quer ouvir tudo que você tem a dizer — Dora orientou. — E ele não vai sair daqui enquanto não te ouvir.

As mãos de Yuri tremiam de nervosismo enquanto ele olhava para baixo, fitando a grama sob seus pés. De alguma forma, sentia o olhar de seu pai sobre ele, mesmo sabendo que uma hora hora desses o velho estava a quilômetros de distancia de Lumiar.

— Eu... Você... — ele começou balbuciando, e então foi se permitindo prosseguir: — Eu sempre amei você, sempre me dediquei a ser o filho que vocês queriam que eu fosse, que a comunidade queria que eu fosse, que a igreja esperava que eu fosse... Sempre coloquei o que vocês queriam em primeiro lugar em tudo na minha vida e quando deixo de fazer isso por um instante, o que recebo em troca?

Quando ergueu a cabeça, viu-se tomado por uma estranha sensação. Era Fred que estava diante dele, parado e com a boca fechada, mas, de alguma forma, era como se não fosse ele, era como se sentisse a presença do homem que o criou. Tomado por essa energia, Yuri continuou a falar:

— Ódio e desprezo! Foi isso que recebi... — Ele estava tremendo. Seu tom de voz subia a cada frase. — Eu sempre amei você como você é, mas você não é capaz de me amar como eu sou. Então eu te odeio por isso. Te odeio me fazer sentir culpado por ter sobrevivido. Por ter me quebrado quando eu precisava de um abraço ... E te odeio mais ainda por não conseguir deixar de te amar, por ficar esperando um perdão seu quando eu não fiz nada de errado, por me cobrar sobre como você vai se sentir diante de cada escolha que eu preciso fazer! — Sentiu que havia lágrimas em seus olhos, lágrimas de raiva ou de mágoa, limpou-as com as costas da mão e olhou ao redor, arfando. — Chega, já deu pra mim — disse ele, por fim, dando alguns passos para trás. 

Yuri sentia a urgência de sair daquele lugar, então deu a volta e saiu andando em passos largos, indo para lugar nenhum. Ouviu quando Fred tentou vir atrás dele, mas foi impedido por Dora. Sentiu-se grato por isso. Queria ficar sozinho. Queria sumir.


***


Os patos flutuavam tranquilamente através do lago, sob o olhar distraído de Yuri, que nem sabia mais por quanto tempo tinha estado ali. De repente, alguém se aproximou, sentando-se no banco de madeira, bem ao seu lado.

— Quer companhia? — perguntou ela.

Sentindo-se indiferente, Yuri fez um ligeiro aceno com a cabeça que podia significar muita coisa, mas que Guiga tomara como um sim.

— O que aconteceu? Eu vi você gritando com Fred.

Gritando?, Yuri não percebeu que havia gritado até ela falar sobre isso. Na verdade, não percebeu muita coisa, e ainda estava tentando entender as sensações que experimentara durante a dinâmica de Dora.

— Foi apenas uma atividade do refúgio.

— Ahhh... Acho que sei qual é. Já fiz uma vez, sabia? No começo achei que era uma palhaçada, mas então fui falando tudo que tinha engasgado, coisas que eu nem sabia que estavam entaladas aqui dentro. E depois me senti bem, mais leve, como se tivesse deixado os monstros saírem de dentro de mim — Guiga falou, olhando para as aves assim como Yuri. — Eu espero que você também se sinta assim.

Yuri refletiu sobre as palavras da colega de curso, sentia algo estranho dentro de si, talvez também tivesse expurgado algumas bestas hoje e agora, no lugar que elas ocupavam, sobrara um vazio. 

— Quem você viu? — ele perguntou, olhando para ela. 

Antes que a patricinha falasse, Nina se aproximou deles. Só agora Yuri havia se dado conta que o sol já estava se pondo.

— Boa tarde minha gente — cumprimentou ela, estava carregando uma cesta.

Ao notar a presença de Nina, os patos deram meia volta e começaram a vir em direção da margem.

— Onde Fred foi? — Nina perguntou.

— Fred? — Guiga indagou.

— Sim. Eu acabei de passar por ele, achei que tivesse com vocês — ela explicou.

Yuri olhou para Guiga, que deu de ombros.

— Deve ter lembrado de fazer alguma coisa. Depois eu falo com ele — supôs Yuri, tentando disfarçar a sua preocupação.



Do I make you cringe? (Fred & Yuri)Onde histórias criam vida. Descubra agora