Netuno

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A água estava fria como se tivesse saído de uma geladeira. Yuri abriu os olhos e, com as mãos apoiadas na bancada, ergueu a cabeça, encarando o próprio reflexo no espelho. Procurava alguma desculpa para ir embora, como sempre fazia, pois era de sua natureza a autossabotagem, mas não encontrou absolutamente nada, seu coração estava misteriosamente em paz e isso já tinha alguns dias. O que é que estava acontecendo com ele? Seja o que for, a culpa era daquele mergulho. Desde que nadara pela primeira vez em anos, algo dentro de si havia se transformado e ele ainda não entendia o quê.

Gotas de água escorriam através de seu rosto como serpentes transparentes, algumas despencavam na superfície da pia e outras encontravam um caminho pelo pescoço até a camisa. Deveria se enxugar, mas sequer sabia onde estava a toalha... percebeu, então, que havia se perdido diante de si mesmo e que não queria se encontrar. Eu tô gato pra caralho, concluiu de repente, levado por uma inesperada onda de amor próprio, cada dia mais presente.

O banheiro da lancha era pequeno e tinha apenas o necessário: uma pia incorporada em um gabinete branco, uma privada bem ao lado da pia como se fossem tudo uma coisa só, um box e o chuveiro. Como Yuri não era nem alto e nem largo, o espaço não o incomodava, mas talvez alguém maior encontraria dificuldade para se locomover.

Admirou a sua aparência por uma ultima vez, abandonou o banheiro social e caminhou no corredor estreito até chegar a um novo cômodo. Fred esperava por ele na porta, assobiando alguma canção e segurando uma garrafa de cerveja. A visão do sorriso que ele lhe lançara fez com que seu coração batesse mais depressa, Yuri ainda se sentia um bobo por isso, mas não tinha nenhum controle sobre o funcionamento interno do seu corpo. Fred acompanhou a aproximação com o olhar paciente, esperando para entrarem juntos igual Dona Edileuza costuma fazer quando vai apresentar a casa para uma visita pela primeira vez.

— Aqui é a suíte — ele anunciou com um ar orgulhoso, apontando com a mão que segurava a garrafa para nenhum lugar em específico. No fim das contas, Frederico Monteiro era um playboy, estava acostumado em impressionar as crias do proletário igual aquele em sua frente. Contudo, Yuri dava algum crédito para isso, entendia que Fred o queria como parte de seu mundo e se sentia tocado com o esforço investido.

Yuri deu alguns passos curtos no interior da cabine, varrendo o lugar com os olhos; viu a entrada de um banheiro que não deveria ser muito maior de que o outro, um sofá encostado na "parede", uma televisão, uma janela com a vista para o mar, vários compartimentos que deveriam servir para guardar roupas e uma cama larga com várias almofadas em cima, além de dois abajures, um em cada lado da cama. Estava cada vez mais certo de que era possível uma pessoa viver uma vida inteira dentro de um barco.

— É mais espaçoso do que eu imaginava — Yuri observou, transmitindo uma admiração real.

Satisfeito, Fred deu alguns passos e se sentou no fundo da cama, mantendo os pés fixos no chão, batucando na coxa com os dedos da mão livre que estava descansando sobre ela. Depois bebeu um pouco mais de cerveja enquanto assistia Yuri se aproximar até ocupar um lugar ao seu lado, os ombros roçando um no outro.

— Eu tava lembrando de uma coisa aqui... Quando eu era criança, eu gostava de assistir aqueles filmes e séries de ficção científica e ficava imaginando como seria sair por aí pelo espaço dentro de uma nave — Yuri começou a contar, um sorriso nostálgico subiu aos lábios acompanhando as lembranças que chegavam em sua mente. Foram tempos tão bons aqueles, apesar de todos os problemas, tivera uma infância feliz.

— Uma nave? Sério? — Fred riu, os olhos fixos no visitante demonstravam certo entusiasmo com o relato.

— Tô te falando, eu pirava nessa ideia! Às vezes brincava sozinho, ou com meu irmão, de que nosso quarto era uma grande nave espacial e imaginava viagens por planetas distantes... — ele continuou, soltando um suspiro. — Eu e minha tripulação imaginária viajando por aí pra salvar o universo... — continuou, dessa vez meio que divagando para ninguém em específico.

Do I make you cringe? (Fred & Yuri)Onde histórias criam vida. Descubra agora