Lenhador

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Yuri acordou sozinho em seu aposento. Não lembrava de como tinha chegado ali, na verdade não tinha certeza de nada. A última coisa que se lembrava era de ter tomado o tal chá "mágico" durante o ritual, e depois disso tudo se tornou uma grande confusão. Sem saber o que fazer, ele permaneceu deitado, fitando o teto de maneira pensativa. O sol já estava forte lá fora, indicando que ele dormiu demais. Desejou ter o celular do lado, para saber o horário com exatidão.

Na noite anterior, sonhou que estava num rio com Marcos quando Fred apareceu. Cada um deles segurou em uma de suas mãos, como cães famintos disputando um osso velho, e Yuri teve que escolher com quem desejava seguir. Quando soltara a mão de Marcos, ele sorriu de um jeito que pareceu orgulhoso, e isso era tudo que se lembrava do irmão antes de ser puxado para fora do rio pelo amigo playboy. Depois disso, tudo virou um breu, até agora, quando acordou.

Após minutos deitado, Yuri finalmente decidiu que precisava se levantar. Aproximou-se da janela, que estava aberta, e observou a movimentação lá fora, um grupo de umas dez pessoas sentadas no gramado em uma posição que sugeria ser uma sessão de meditação. Ele também deveria participar dessas atividades terapêuticas, mas deve ter dormido demais e ninguém quis acordá-lo. Melhor assim.

***

Nina estava na cozinha quando Yuri apareceu, faminto. O café da manhã já havia sido servido, mas a funcionária arranjou bolinhos de arroz com legumes, frutas, chips de berinjela e um chá de capim-santo e limão para o desjejum do hóspede atrasado. Yuri preferia um bom e velho pão com ovo, mas não estava em posição de exigir nada.

Enquanto fazia a primeira refeição do dia, a universitária veio para se juntar a ele na mesa.

— E então, como foi ontem? — perguntou, pegando um dos chips de berinjela da bandeja. — O que você viu?

Yuri terminou de engolir o pedaço do bolinho e bebeu um pouco de chá para ajudar a descer.

— Eu não sei. Não lembro de muita coisa.

Nina balançou a cabeça.

— Conversa. Eu sei que foi uma bad trip. Agora teu cérebro tá tentando deletar tudo da memória, para te proteger, mas se cavar mais fundo, irá encontrar o que está procurando.

— Sabe? — Yuri perguntou, confuso, agarrando-se à primeira fala dela.

— Você causou ontem, Yuri — contou Nina.

— Eu?

Ela riu para ele.

— Você mesmo. Empurrou o coitado do Fábio e...

— Na fogueira? — as palavras saíram da boca de Yuri instantaneamente, sem que ele pensasse antes no que iria dizer. Isso o deixou desnorteado.

— Não, cruzes! No chão mesmo. E depois saiu correndo pela mata. Ninguém te alcançou, passamos boas horas te procurando...

E nesse instante, a mente de Yuri foi invadida por vários flashes perturbadores, fragmentos da noite passada. Lembrou-se do pai, de Fernando, Marcos, de tudo.

— Foi teu amigo que te achou e te trouxe de volta em segurança. Dora veio chamar assim que você sumiu, ele ficou muito preocupado, xingou meio mundo, mas depois se acalmou e foi te procurar. Dora garantiu pra ele que ele te encontraria. E encontrou, não foi?

— Encontrou... eu acho — Yuri respondeu, envergonhado, pensando em todos os transtornos que deve ter criado. E agora estava com mais uma dívida com Fred.

— E aí, lembrou de alguma coisa?

Prineiro ele pensou em sustentar o que havia dito antes, mas não conseguiu se controlar e desatou a contar tudo para ela.

***

Perto do final da tarde, Yuri foi ao encontro de Fred, que estava isolado em uma cabana, tão entretido observando as lenhas que aparentemente não o viu se aproximar. Estava coberto de suor, usava luvas de proteção nas mãos e segurava um machado. Havia pilhas de lenha, de modo que Yuri não entendia qual a necessidade do amigo estar se dedicando àquele trabalho. A hipótese que fez mais sentido foi a de que se tratava de alguma tática de conquista para atrair alguma das moças do refúgio.

— Quando Seu Fábio me falou que você estava aqui cortando lenha, eu fiquei confuso. É uma imagem difícil de imaginar até que se veja com os próprios olhos — Yuri falou, cruzando os braços.

Fred sorriu para ele e enxugou o suor da testa com o braço. Era a primeira vez que estavam se vendo naquele dia.

— Ele não te explicou o por quê? É terapêutico, funciona muito bem para liberar a raiva e o estresse.

Yuri não pareceu ter se convencido.

— Duvido que um coitado criado em apartamento a base de leite com pera consiga fazer isso bem. Não tem sentido. Olha esses braços de grilo aí.

— Ah, é? Quer apostar? — Fred propôs. Yuri apertou a mão dele. A essa altura, já havia se esquecido do que viera fazer ali. — Se eu conseguir no primeiro golpe, você vai ter que fazer o mesmo.

— Fechado.

Fred catou uma nova tora de madeira e a posicionou sobre o tronco fincado no chão. Ele lançou um olhar de desafio para Yuri, depois se virou, ergueu o machado e crac!, a tora se partiu perfeitamente em duas partes.

— Toma essa, otário — ele se gabou, com um risinho de vencedor nos lábios.

Yuri devia ter imaginado. Não era a primeira vez de Fred em Lumiar, ele já devia ter feito isso algumas vezes.

— Se até você consegue, não deve ser tão difícil como eu imaginava. Dá isso pra cá.

Yuri tomou o machado. Fred ofereceu as luvas, mas ele não quis. Posicionou-se no lugar certo, ergueu a ferramenta e golpeou com força a tora de madeira. Ou pelo menos tentou. Na primeira vez, nem triscou na tora; na segunda, pegou de mal jeito na lateral e a tora voou para longe; na terceira, ocorreu o mesmo da segunda. Fred assistia a cena de perto, rindo da sua desgraça. E isso não irritou Yuri, pelo contrário, o fez sentir que a amizade deles podia ser restaurada.

— Não é apenas questão de força, precisa ter jeito. — Explicou o mais velho. — Deixa eu te mostrar.

Fred chegou por trás de Yuri, que ficou parado, talvez porque quisesse aprender o macete, ou talvez porque não conseguia se mexer.

— Abre mais as pernas — orientou, encostando na coxa de Yuri, que obedeceu, abrindo-as até ele pedir para parar. — Isso, aqui está bom. Você vai ter mais apoio desse jeito.

O playboy estava tão perto que Yuri sentia a respiração dele em sua nuca, arrepiando-se inteiro. Não conseguia falar nada, seus músculos estavam tensos, em alerta. De repente, o corpo dele encostou no seu.

— Segura desse jeito — ele orientou, falando perto do ouvido do bolsista. As duas mãos de Fred seguraram as de Yuri com cuidado. Ele desceu uma mão até a base e a outra ele ergueu quase até a ponta da ferramenta.

— Assim? — perguntou Yuri, nervoso. Estava tentando manter o foco em aprender como executar bem o movimento. Era só nisso que pensava, mais nada.

— Isso. Agora você levanta assim — Fred deu um impulso para cima, Yuri entendeu que era pra erguer o machado e o fez vagarosamente, até o "professor" mandar parar. — Aqui tá bom, não precisa levantar para trás da cabeça. Sente ele leve? — Fred se afastou com alguns passos para trás, Yuri finalmente conseguiu respirar. — Agora é só partir pro ataque.

Yuri respirou fundo, até conseguir se recompor, e então se concentrou no pedaço de madeira, projetando neste as angustias que carregava consigo. Dessa vez, quando o machado finalmente caiu, a tora rachou em dois pedaços. Fred tem razão, percebeu enquanto ria para ele, essa porra é terapêutica.

Do I make you cringe? (Fred & Yuri)Onde histórias criam vida. Descubra agora