Roda de Viola

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Depois da janta, os hóspedes do refúgio se reuniam com funcionários ao redor da fogueira, isso, segundo Nina, em dias em que não existia nenhuma atividade ou ritual programado. Ao se aproximar, Yuri percebeu que todos os olhares se voltaram para ele. Eu devo ter metido o apavoro nesses aí, ele disse mentalmente. Tentou se recordar de mais alguma coisa, mas foi inútil, não conseguia se lembrar de nada fora de sua perspectiva e fazer um pedido público de desculpas só pioraria a situação.

— Eu não devia ter vindo — cochichou com Fred, constrangido.

— Relaxa, irmão. Você não deve a ninguém — ele respondeu, forçando um sorriso cínico para os presentes. Até onde Yuri sabia, Fred também tinha aprontado das suas na noite anterior, mas ao contrário de qualquer pessoa com bom senso, o amigo era o tipo que não se intimidava com ninguém e se o fizesse, conseguia disfarçar muito bem.

Yuri tentou assimilar o conselho do playboy, e, com a cabeça erguida, sentou-se ao lado dele sobre um tronco de árvore que fazia a vez de banco. Nina acenou para a dupla de onde estava, sentada ao lado de Raul, um hóspede português dado à cantoria. Ele puxou a música "Oceano" de Djavan, alguns ficaram calados, outros cantarolaram junto dele.

— Pô tá mandando bem, a lá, o sotaque sumiu — elogiou Fred, cheio de admiração. Yuri concordou.

E ali, sentado enquanto ouvia a canção, ele se lembrou de que tinha outra coisa para falar.

— Eu soube que você me encontrou ontem — falou de repente, olhando para Fred em busca da atenção dele. — Fui até você pra te agradecer, mas o desafio de cortar aquelas lenhas me distraiu. Então agradeço agora... obrigado. Você é o melhor parça que alguém pode ter por perto — elogiou-o com a voz um pouco trêmula. Talvez tenha exagerado, mas sentia que precisava botar para fora toda a gratidão que preenchia o seu peito ou então iria explodir.

— Sabe o que ela me falou ontem a noite? — Ela?, Yuri seguiu a direção do olhar de Fred, vendo que ele estava mirando em Dora. A anfitriã percebeu que Yuri a encarava e o surpreendeu com uma piscadela, como se quisesse insinuar algo que ele não foi capaz de captar. — Ela pediu para que eu não me preocupasse, pois você podia fugir de qualquer um ali, menos de mim.

Yuri sentiu um frio na barriga junto de uma estranha sensação de déjà vu, como se já tivesse ouvido aquela bobagem antes. O playboy fitou-o de um jeito sério, como um ar de quem estava pensando sobre o que queria dizer.

— Que estranho... — Yuri observou, sentindo um sorriso nervoso subir aos seus lábios. — Dona Dora as vezes sai com umas viagens nada a ver.

Fred pigarreou, olhou para os lados e coçou a cabeça como se estivesse analisando a cláusula de algum contrato. Por um momento, pareceu que ele não ia falar mais nada, mas, de repente, encarou Yuri novamente e indagou:

— Será mesmo? — Será o quê, mano?, Yuri cogitou perguntar, mas preferiu o silêncio. Viu-se preso ao olhar dele, a luz da fogueira refletindo em sua pele, o cheiro do perfume que ele aplicara após o banho... Tentou decifrar o motivo do amigo parecer tão inquieto agora, mas isso estava levando mais tempo do que ele gostaria. Após um breve momento de silêncio, Fred voltou a falar: — Yuri... Eu acho que...

E então a música acabou e todos aplaudiram, roubando a atenção dos dois, que viraram para Raul e reagiram com alguns aplausos sem entusiasmo.

— Sim, diga — Yuri perguntou depois que todos se calaram e uma hóspede chamada Deise começou a cantar uma música cubana.

— Esqueci o que ia falar. Deixa pra lá, cara. Vamos curtir o som — parecia estar decepcionado, mas não com Yuri, e nem tinha porquê já que ele não tinha feito nada. Ou será que fez? A dúvida encheu a sua cabeça.

Essa estadia em Lumiar estava ficando cada vez mais estranha. Quando chegaram, Dora falara que queria trabalhar algo em Fred, talvez estivesse fazendo isso, pois o amigo desaparecia de vez em quando sem dizer nada. E o comportamento dele estava oscilante, ora parecia o Fred de sempre, outra se entregava a períodos longos de silêncio. Ele deve tá de saco cheio desse lugar, deve tá louco pra voltar pra farra, Yuri elaborou, encontrando a justificativa que estava procurando.

***

A manhã seguinte foi marcada por uma roda de conversa de quase duas horas, em que Yuri ficou sentado ouvindo os dramas da classe média branca brasileira. Isso ainda foi melhor do que a tarde, quando Dora o convenceu a participar do clube de Yoga. Ele não era a pessoa mais flexível do mundo e acordara com os braços doloridos por conta do esforço rachando lenha, então algumas posturas exigiram mais do que ele podia oferecer.

No final da tarde, quando voltou para o quarto após um refrescante banho de ervas, encontrou Fred adormecido na cama dele. Pensou em acordá-lo para jantar, mas ainda faltava algumas horas, então se sentou em sua própria cama para passar o tempo. Yuri nunca foi muito apegado à redes sociais, mas tinha que admitir que o tempo se arrastava longe delas. Como não trouxera nenhum livro consigo, o que restou para fazer foi pensar.

Fred gemeu em sua cama ao virar do lado que estava dormindo para o outro. Isso atraiu a atenção de Yuri, que olhou para ele discretamente mesmo estando os dois sozinhos no quarto. O pior é que o filho da mãe fica bonitinho quando tá assim, dormindo de boca fechada, pensou ele de forma intrusiva, em seguida respirou fundo e soltou o ar pela boca após ter uma vaga lembrança da tarde passada, Vai dormir que teu mal é sono, ele se censurou mentalmente. Por fim, decidiu seguir o próprio conselho.

***

Quando acordaram e decidiram descer para jantar, já havia passado das 20 horas. A maioria estava na parte externa do recinto, na roda de música. Nina serviu Fred e Yuri com o que sobrou e se sentou junto a eles na mesa. Primeiro conversaram sobre o ICAES e as expectativas para o próximo período, quando o assunto se tornou as eleições do DCE, Yuri rapidamente mudou o rumo da prosa para Lumiar, deixando que Nina explicasse como viera parar ali e sobre a rotina no lugar, inclusive sobre os favores proibidos que ela oferecia em troca de dinheiro.

— Dora está muito doente, vocês tão ligados né? — Nina revelou, de repente, para surpresa somente de Yuri.

— Sim — disse o playboy. — Tem pouco tempo de vida. É uma pena.

— Ela diz que quer passar os seus últimos dias aqui, fazendo o que ama, ao lado das pessoas que ama. É uma mulher muito especial — revelou Nina.

— O que ela tem? — perguntou Yuri.

— Câncer — Nina respondeu prontamente.

Yuri lembrou-se logo de Fernando, sentindo um aperto no peito ao imaginá-lo no lugar de Dora.

— Nina... será que amanhã você tem como dar um jeito de conseguir o meu celular? — ele pediu.

Uma lufada de ar escapou dos lábios de Fred. Yuri teve a sensação de ter ouvido ele resmungar algo, mas não tinha certeza, pois foi um som abafado.

— Eu posso até... — A funcionária começou a dizer, mas foi atravessada pelo playboy.

— Pra que tu quer o celular? Sério mano, pensei que ia levar isso aqui a sério.

Yuri lançou um olhar confuso para Fred, que estava na outra ponta da mesa, de frente pra ele.

— Deu vontade de falar com Fernando, saber como as coisas estão, só isso. Ele ia...

Fred não quis saber de ouvir as suas explicações.

— Achei que seria fácil para você se desprender do mundo lá fora, mas vim até aqui pra descobrir que você tem mais em comum com a Guiga do que eu imaginava — ele falou, levantando-se da mesa — Valeu vocês dois, vou lá na rodinha ouvir a galera.

Ele não os convidou para ir junto, isso ficou claro para Yuri, que ainda estava processando o fato de ter sido comparado a Guiga.

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Nota: Esse capítulo e o próximo seriam um só, mas como eu não conseguiria finalizar tudo até amanhã, achei que seria melhor dividir pra vocês não ficarem muito tempo sem atualização. Se sentirem algo estranho nesse capítulo, é isso.  Agradeço todas as mensagens que to recebendo de vocês, fico feliz que estejam gostando. 

Do I make you cringe? (Fred & Yuri)Onde histórias criam vida. Descubra agora