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Isabella

Olhei ele ser levado junto com o Bope, meu coração acelerado, a respiração curta, como se o mundo estivesse desmoronando bem ali, diante dos meus olhos. Parecia que meu inferno nunca teria fim. Sempre tinha alguma coisa acontecendo, sempre alguma merda nova pra me lembrar que paz era um luxo inalcançável.

Comecei a chorar, o corpo tremendo inteiro, e abracei a mim mesma numa tentativa ridícula de encontrar algum conforto. Como se aquilo fosse ajudar a afastar a dor que apertava meu peito.

Senti um braço por trás me puxando num abraço, um toque firme, mas cuidadoso. Quando virei, era o Kaká. O choque bateu forte porque ele nunca tinha feito isso antes. Sempre demonstrou preocupação comigo por causa do Branco, mas sempre foi mais na dele, observando, cuidando de longe.

Mas, naquele momento, ele viu que eu precisava daquilo. O toque leve no meu ombro foi mais do que um simples gesto, foi um lembrete de que, no meio daquele caos, alguém ainda se importava.

Kaká: Ele vai sair dessa, ele fez isso por vocês... — A voz dele saiu firme, mas não fria. Era estranho ver o Kaká desse jeito. — Vou pedir pra alguém te deixar em casa.

Balancei a cabeça, limpando o rosto, tentando engolir o nó na garganta.

Isabella: Eu preciso ir até a Talita... Ela ficou na peixaria, deve estar preocupada. Tá com meu celular.

Kaká: Vamo até lá. — Ele tirou a mão do meu ombro e indicou com a cabeça pra eu seguir ele.

Antes que pudéssemos sair, um dos caras apareceu apressado, a expressão fechada e um peso nítido no olhar.

Tucano: Coe, Kaká, caiu dois dos nossos.

Kaká: Tá maluco? Quem foi? — A tensão no rosto dele cresceu na hora, e eu senti um aperto no peito.

O Tucano olhou pra mim rapidamente antes de voltar pro Kaká, como se estivesse decidindo se falava ali ou não.

Tucano: Mataram o Brito.

Meu corpo travou. Meus olhos se arregalaram no mesmo instante. O que já tava ruim, conseguiu ficar pior.

Kaká: Tá de k.o, caralho? Cadê ele?

Tucano: Os menor acharam ele na viela, tão levando pro postinho, mas falaram que tá sem pulso nenhum.

Kaká: Toma no cu, caralho! — Ele xingou alto e chutou uma lata no chão, a raiva transbordando. — Arruma a favela toda e chama o Lobo. Depois que tudo tiver organizado, manda a ordem que não é pra nenhum morador sair de casa sem necessidade. Passa a visão pra geral, Tucano! Quero reunião assim que o Lobo chegar, todo mundo na atividade.

O pessoal concordou com ele e rapidamente todo mundo foi saindo pra fazer o que ele mandou. Parecia até o Branco dando ordem.

Kaká: Tu dá a notícia pra mulher dele? Sei que são amigas.

Engoli em seco. Meu peito doeu só de pensar nisso.

Isabella: Eu não sei se consigo.

Kaká: A gente chegando lá pra dar essa notícia não vai ser a mesma coisa que a amiga dela. Mas tu que sabe.

A Talita sempre esteve comigo, no claro e no escuro. Passou poucas e boas por me acobertar aqui, segurou várias barras do meu lado. Eu não podia deixar ela sozinha nessa, nem fodendo. Eu posso estar mal, mas ela também ia ficar, e talvez até pior. Era o marido dela.

Isabella: Eu falo, só me leva lá... Mas você fala com a mãe do Branco.

Ele assentiu com a cabeça e nós fomos andando até a peixaria. A porta tava fechada, e o Kaká bateu até o dono abrir. Assim que a Talita me viu, correu até mim e me abraçou apertado.

Talita: Eu fiquei tão preocupada contigo! O que aconteceu??

Isabella: Eu ainda não sei o porquê, mas eles queriam me levar. Só que o Branco se entregou. Em troca de mim, levaram ele.

Talita: Meu Deus... O Branco foi preso. E como você tá?

Isabella: Perdida. — Suspirei fundo, tentando buscar coragem pra contar o resto. — Amiga, eu preciso te falar uma coisa.

Talita: Fala.

Isabella: Você precisa ficar calma, tá? Senta aqui. — Puxei ela pra sentar na cadeira do estabelecimento e olhei pro Kaká, que encarava nós duas de perto. — O Brito... Ele foi baleado e tá indo pro hospital.

O semblante dela mudou na hora. A expressão séria, os olhos arregalados. O peito dela subia e descia de maneira descompassada.

Talita: Fala a verdade, Bella. Eu te conheço. Ele não tá indo pro hospital, né? Ele morreu?

Engoli em seco e assenti devagar. Vi uma lágrima solitária cair do rosto dela, mas a expressão dela continuava dura, sem reação.

Me aproximei e envolvi ela num abraço apertado, sentindo suas lágrimas molharem meu ombro. Ficamos longos minutos só assim, abraçadas, em silêncio. Cada uma chorando pelo seu motivo, mas ao mesmo tempo tentando segurar a outra em pé.

Isabella: Vamos pro hospital, eu vou contigo.

Ela assentiu devagar com a cabeça e se levantou. Peguei na mão dela e a gente saiu dali.

Pedi pro Kaká nos deixar onde o Brito tava. Fiquei o resto do dia ao lado da Talita, ajudando ela com tudo. Ela teve que reconhecer o corpo, escolher a roupa dele, avisar os familiares... Eu tava tentando dar o meu máximo, segurando as pontas. Mesmo destruída, eu precisava dar apoio pra ela.

[...]

Faziam dois dias desde a invasão, e tudo na comunidade tava um caos. O clima era de luto total. Tinham decretado dois meses sem baile em respeito à memória do Brito.

Eu e a Talita estávamos dormindo juntas na minha casa porque nenhuma das duas tinha força pra ficar sozinha. Ela, principalmente.

Desde o velório, não derramou mais uma lágrima. Tava apática, como se a ficha ainda não tivesse caído. Mas só ela sabia como tava a cabeça dela.

Isabella: Eu vou falar com o Lobo. Vai ficar bem?

Talita: Eu vou... Agradece a ele pelas flores por mim.

Assenti e saí de casa, trancando tudo antes de descer pra boca. Assim que os meninos me viram chegando, vieram até mim.

- Tá bem? Qual foi, patroa?

Isabella: Eu tô bem. O Lobo tá por aí?

- Lá em cima, quer que eu chame ele?

Isabella: Eu subo. Avisa pra ele, por favor.

Aguardei até darem a autorização.

- Só subir.

Passei pelo beco estreito e entrei naquela casa velha. Subi a escada e encontrei o Lobo sentado numa cadeira, um cigarro na mão, olhando fixamente pra alguma coisa na mesa. O ambiente carregado, as prateleiras cheias de armas e drogas espalhadas.

Lobo: Tá bem?

Isabella: Tô.

Lobo: Se quisesse falar comigo, era só mandar me chamar. Não precisava vir até aqui.

Isabella: Eu queria saber como anda as coisas com ele. Preciso ver ele.

Lobo: ele desceu hoje pro presídio, um informante me avisou. Vamos acionar o advogado que vai ter uma reunião com ele amanhã, posso tentar descolar esse negócio da visita. Porque de verdade, não sei se ele sai antes do moleque aí nascer.

Respirei fundo tentando não chorar, eu sabia que isso sempre foi um risco por ele ser bandido, mas jamais imaginei que iria acontecer justo agora, na minha gravidez, no meu momento frágil.

Isabella: organiza a visita da mim, só me fala o dia e a hora e o que eu precisar fazer. Pelo menos pra mim ver ele antes de ganhar o Guilherme.

Lobo: pode deixar. Vou ajeitar tudo e te falo, me passa seu numero que eu te mando as novidades. — peguei meu celular e pedi pra ele anotar o dele — eu vou fazer de tudo pro Branco sair o mais rápido, nem que eu gastei meio milhão com os melhores advogados.

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