32: O cálice

12 2 0
                                    


Bella


A felicidade e a tristeza caminharam de mãos dadas comigo e Adam entre as lápides frias da cidade dos esquecidos, entrelaçados, unos... todos os tons tinham se misturado e criado o que tínhamos ali naquele dia ruim... escuro, sombrio, sombras e escuridão, sem sol, nuvens densas demais, como se tudo ao redor soubesse o que estava acontecendo até o próprio clima estava de luto... o enterro foi no dia seguinte a festa, naquele ambiente eu recordava de como tinha sido aquele dia desde o êxtase a tristeza profunda, em silêncio eu me lembrava, parecia que a felicidade tinha sido apagada, soprada para longe como a chama de uma vela acesa, um sopro e chama se apagou e tudo mergulhou na escuridão.
Tentei encontrar algo reconfortante nas palavras de Adam ao meu lado, quase três meses depois do velório não conseguia absorver qualquer palavra ou gesto de conforto, não havia nada além de tristeza, e enquanto as recordações me vinham eu estava exatamente no mesmo estado de espírito desde o dia do enterro, conseguia me lembrar perfeitamente do que senti, desolada como estava as palavras fracas do padre e sua voz exaurida vieram a mim como se o caixão ainda estivesse ali... talvez eu tivesse prestado mais atenção ao discurso se parasse de olhar... se me desviasse por um segundo... enquanto procurava pelo sentido, vida e morte... mas que sentido havia ali...? Nenhum, simplesmente não era para ter acontecido.
-Vá em paz garoto. Disse Adam ao meu lado provavelmente tornando aquela lembrança eterna em seu íntimo... onde jamais morreria assim como eu nunca morreria em suas memórias... eu toquei o rosto pálido que jazia dentro de um caixão, coloquei a rosa branca em seu peito imóvel, ele adorava as brancas dizia que lhe traziam paz por isso Adam mandou que espalhassem pela propriedade mudas de roseiras brancas, em homenagem a ele...
Ele não tinha família não tinha ninguém além de nós, éramos a única família que ele conhecia e pensar que jamais o veria ali pelos corredores com as mangas enroladas até os cotovelos polindo a prataria ou ouvir sua voz dando ordens aos criados ou vê-lo de perfil no jardim pela janela com um sorriso afetuoso nos lábios olhando as tão queridas rosas, de minuto em minuto olhando o relógio antigo de bolso que carregava consigo se certificando se cada detalhe das tarefas diárias daquela imensa residência fossem executadas com perfeição e que tudo estivesse na mais perfeita ordem, sempre zeloso, cuidando de tudo, cuidando de nós...
Ele já não era mais tão jovem tinha seus oitenta e três anos mesmo assim nunca o vi reclamar de nada, era um idoso raro que vivia com simplicidade, filho de judeus após a morte de seus pais aos quinze anos ele passou a vida inteira ao lado do meu marido, podia ver em seus olhos a importância que aquele senhor tinha para Adam era como se estivesse enterrando um filho amado, isso doeu... vendo o que eu tinha tirado dele eu me afastei do caixão e segurei sua mão lembrando do erro que cometera...
A taça cintilante estava em minhas mãos, a ergui para o brinde, o vinho escuro no copo, a bebida da vida... que ironia... eu não queria beber, nunca tive muito apreço por álcool e mesmo que quisesse não poderia beber estava grávida me sentia enjoada queria me sentar depois de horas em pé passando por entre as mesas recebendo cumprimentos pela chegada do bebê com Adam extasiado comemorando o fato com os convidados, sua alegria era contagiante... então devolvi a taça a bandeja que o garçom servia, a bandeja estava vazia, e eu vi a taça passar para outras mãos nas mãos de quem a tomou para si, tinha sido sugestão de meu pai que ele tomasse uma taça de vinho todas as noites para sua saúde... mas eu não tinha ideia do que poderia acontecer, o que tinha ali... além da bebida escura e depois a imagem de um homem caído no gramado entre as mesas a minha frente me tomou, os gritos começaram com o meu... seu rosto estava ficando vermelho demais como se o sangue quisesse transpor a pele de seu rosto com uma pressão impossível de contar, os olhos saltados ficando vermelhos, o sangue escorrendo pela boca, nariz e ouvidos, eu segurei sua mão enquanto meu pai tentava socorre-lo mas não foi possível que sua vida fosse salva... seus olhos se fecharam em meu rosto e ele se foi, foi tão rápido... o doutor Richard pegou a taça curiosamente ao lado e a ergueu até o nariz... seus olhos se arregalaram.
-Veneno. Sussurrou ele, os olhos vazios de Adam ao lado do corpo sem vida fitaram os meus, Adam tinha me visto devolver a taça, tinha visto quem a pegou.
-O cálice era para você. Disse ele, seu olhar ardeu no meu sabendo o quanto estivera próximo de perder a felicidade outra vez, ele se ergueu do chão e me trouxe para seus braços olhando vacilante os rostos familiares congelados na mesma expressão de pânico...
Eu olhei o caixão descer assim como o restante presente no velório, as roupas escuras, o céu... a culpa unindo-se a escuridão com o resto que sobrara mas eu não estava só... Adam estava comigo, como prometera que estaria... ainda que tudo estivesse nublado, ele e eu estávamos juntos, éramos indivisíveis, um só...
-Nos fará uma grande falta meu velho amigo... adeus Alfred. Disse Adam, eu apertei sua mão e ele me abraçou, olhei uma última vez o rosto do mordomo pensando em meu remorso se eu não tivesse devolvido a taça a bandeja Alfred ainda estaria vivo.
Os dias viraram semanas de luto, eu não conseguia trabalhar e Adam ficava comigo a maior parte do tempo, e sempre, todos os dias o cemitério era para onde íamos nas manhãs, tinha medo do abandono daquele túmulo, tinha medo de deixá-lo ali, ser fria como se nada tivesse acontecido, dar as costas negava quem eu era... deixar Alfred foi a coisa mais difícil para mim, era a parte mais complicada dos dias descendentes a sua morte, ir embora e deixá-lo para trás foi tão difícil quanto fora deixar Dummont partir, meu amigo maestro.
Simplesmente deixar que suas lembranças pouco a pouco fossem perdidas, que um ser humano tão bom fosse apagado da história porque deixara de existir foi algo que me incomodou muito, talvez para aliviar minha culpa Adam não me impedia de ir ali, me acompanhava cordialmente e me acolhia em seus braços sempre que achava que não iria suportar... a morte inesperada de Alfred tinha causado um dano permanente em minha família, em mim... e eu não conseguia descartar a sensação de que aquela seria apenas uma amostra do que viria pela frente, não era necessário prever o futuro bastava ser de carne e osso para sentir o que estaria por vir, e meus temores só aumentavam a medida que tentava seguir em frente...

A Presença Onde histórias criam vida. Descubra agora